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Carlos Julião, engenheiro militar e desenhista de origem italiana ao serviço da coroa portuguesa, não chegou a morar ou se estabelecer no Brasil.
Ele viveu em Portugal, onde atuou na administração colonial, mas produziu uma vasta obra sobre as colônias portuguesas, incluindo o Brasil.
Seus desenhos e aquarelas documentam a vida social, cultural e étnica das colônias e foram criados com base em relatos, documentos e possivelmente em visitas pontuais.
Portanto, não há registros de uma chegada ou partida de Julião especificamente para o Brasil, mas seu trabalho permanece como uma das mais importantes representações iconográficas do período colonial português.
Obras de Carlos Julião sobre o Brasil
- A Figuração do Espaço Colonial
- Figurinhas de Brancos e Negros: um álbum de tipos brasileiros
- As Figurinhas na Pintura
1. A Figuração do Espaço Colonial
De acordo com a legenda, uma Elevasam, Fasada, que apresenta em perspectiva marítima a Cidade do Salvador, localizada na Baía de Todos os Santos, na América Meridional, situada a 13 graus de latitude sul e 345 graus e 36 minutos de longitude. Na parte inferior, estão detalhadas as plantas e perspectivas em maior escala de toda a fortificação que protege a referida cidade.
Este prospeto foi tirado por Carlos Julião, Capitão de Mineiros do Regimento de Artilharia da Corte, na ocasião que foi na Nau Nossa Senhora Madre de Deus.
Em Majo 1779, obra conservada no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (GEAEM), em Lisboa (Figura 1).
A Elevação e fachada é uma obra composta de três partes ou segmentos, que se distribuem nos quatro segmentos horizontais em que o papel suporte se encontra dividido em:
1. Primeiro Segmento
O primeiro deles, o superior, é ocupado por uma vista em prospecto de Salvador, de feitio bastante convencional, em que a cidade é representada em perfil tomado do mar.
O desenho põe em evidência o modo como o núcleo urbano se assenta sobre o relevo natural do sítio. Neste prospecto, são apontados com números os principais edifícios e logradouros da antiga capital do Brasil, cada um deles correspondendo a um item da legenda explicativa que ocupa toda a faixa inferior da prancha, ladeando o extenso título.
Tanto Ferrez (1963:38) quanto Reis (2000:316) consideram que este prospecto de Salvador seja uma cópia do perfil da cidade levantado por José Antonio Caldas (1725-1782)3 em 1756, sob orientação do engenheiro militar Manuel Cardoso de Saldanha.
Foi discípulo de Manoel Cardoso de Saldanha, sob cuja orientação foi treinado nas atividades de engenheiro militar, sendo-lhe atribuídas obras de fortificação e edifícios religiosos. Foi professor da Aula Militar da Bahia desde 1761 até o ano da sua morte.
O principal indício deste fato seria a representação, na Elevação e fachada, da Catedral de Salvador ainda com duas torres, sendo que uma delas tinha sido demolida em 1756, em decorrência de um deslizamento ocorrido na Ladeira da Misericórdia.
Segundo afirmam ambos os historiadores, o levantamento de Caldas foi amplamente copiado por diversos outros autores durante todo o século XVIII.
2. Segundo Segmento
No segundo segmento, por sua vez, encontra-se representado o sistema de defesa da cidade, com seus oito fortes e duas baterias desenhados concomitantemente em planta e elevação, sendo as duas baterias representadas superpostas ocupando o nicho central do segmento.
Os desenhos são acompanhados de legenda explicativa, que detalha o posicionamento geográfico de cada forte, assim como o respectivo calibre de sua artilharia, conforme as legendas abaixo:
- Forte de São Bartholomeu da Passagem, situado no Rio Pirajá, distante da Bahia uma légua. A sua artilharia é composta por oito peças de ferro, para saber: uma de calibre doze, uma de calibre oito e seis de calibre seis.
- Forte de Santo Antônio da Barra da Cidade da Bahia. Este forte defende a Porta da Barra, que dá acesso à Baía. A sua artilharia é composta por 16 peças, sendo 8 de bronze, a saber: duas de calibre 26, quatro de calibre 16 e duas de calibre 19. As outras 8 peças são de ferro, de calibre 36.
- Fortinho de Santa Maria. Este fortinho, situado ao norte do Forte de Santo Antônio da Barra, a um tiro de peça, defende um ponto estratégico na Barra, apto para desembarque. A sua artilharia é composta por peças de ferro de calibre 24 e 18.
- Fortinho de São Diogo. Situado ao norte do Fortinho de Santa Maria, a um tiro de mosquete. Entre esses dois fortinhos está o Porto Irajá da Barra. A sua artilharia é composta por cinco peças de ferro, a saber: três de calibre 10 e duas de calibre 8.
- Bateria de Paulo e à Bateria da Ribeira. Estas baterias cruzam seus tiros com a Fortaleza do Mar e são a melhor defesa da Bahia. VI. A sua artilharia é composta por 19 peças de ferro de calibre 24. V. A sua artilharia é composta por 2 peças de bronze, uma de calibre 14 e outra de calibre 12. Além disso, possui mais 30 peças de ferro, sendo 18 de calibre 26, 10 de calibre 18 e 2 de calibre 8.
- Fortaleza do Mar. Esta Fortaleza está edeficada dentro do Mar afastada da Terra dois tiros de Mosquete a sua Art.a de Bronze, de Calibre 24, 18, 16, e 8 e a de Ferro, e de Calibre 40, 36, 26 e 18.
- Fortinho de Francisco. Situado no centro da povoação da Marinha da Cidade da Bahia, é defeituoso e sem defesa pelos edifícios que lhe avançam lateralmente. A sua artilharia é composta por 7 peças de ferro, a saber: duas de calibre 12, duas de calibre 10 e três de calibre 6.
- Fortinho do Alberto. Situado junto à casa de Noviciado que foi dos Jesuítas, este forte é defeituoso, tendo aliada a Marinha. Neste lugar, há necessidade de [reforço?]. A sua artilharia é composta por 7 peças de ferro, a saber: duas de calibre 72, três de calibre 10 e duas de calibre 8.
- Fortinho de Monserate. Situado na ponta do norte, [em cima?] da Península, norte, sul com o Forte de Santa Maria, que fica na ponta do sul, na […] que forma esta linha está colocada a cidade da Bahia e seus subúrbios. A sua artilharia é de ferro, de calibre 18 e de 12.
Consideradas, portanto, em conjunto, as duas partes que compõem a metade superior da prancha de Julião constituem uma tipologia de representação bastante condizente com o universo dos registros visuais de caráter militar, abundantes na produção iconográfica setecentista relativa ao Brasil.
O desenho serve aqui a demonstrar o domínio sobre o território: o perfil da cidade evidencia a ocupação do sítio, aponta a presença de tais e quais instituições civis e religiosas, índice do grau de desenvolvimento do núcleo urbano; o registro dos fortes, por outro lado, dá a ver os recursos disponíveis para a manutenção deste domínio.
Estamos diante do que Belluzzo chama de um desenho finalista, instrumental, que “não deixa fluir o imaginário (…) e serve à construção da vida real” (Belluzzo 1994:3,49).
3. Terceiro Segmento
O terceiro dos segmentos horizontais que compõem a prancha da Elevação e fachada, porém, marca um diferencial da obra de Julião no âmbito da produção iconográfica de cunho militar.
Os cinco compartimentos em que é dividida esta seção da obra encerram representações de figuras humanas, protótipos dos tipos urbanos que serão largamente difundidos pela produção costumbrista dos artistas viajantes do século XIX.
As figuras representadas na prancha de Julião correspondem, grosso modo, a duas senhoras brancas, duas figuras de escravos (sendo um negro com jarro de barro na cabeça e uma negra carregando um tabuleiro de frutas), além de um grupo central, em que dois escravos carregam uma senhora branca numa cadeirinha4, acompanhados por um cavalheiro que lhes indica a direção a seguir5. As figuras são identificadas com as seguintes legendas:
- Modo de trajar das mulatas da cidade da Bahia
- Preto que vende leite na Bahia
- Carruagem, ou cadeirinha em que andão as senhoras na cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos
- Mossa dançando o landú de bunda a cinta
- Traje das pretas minas da Bahia quitandeiras
5 Dos personagens representados, três correspondem exatamente a tipos que constam do álbum Riscos iluminados ditos de figurinhos de brancos e negros dos usos do Rio de Janeiro e Serro do Frio, obra atribuída a Carlos Julião, de propriedade da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, como veremos adiante.
Este fato naturalmente põe em dúvida o fato de as figuras do panorama de Salvador serem mesmo provenientes da Bahia, ou, pensando pela via contrária, se os tipos do álbum da Biblioteca Nacional representam exclusivamente os usos do Rio de Janeiro e Serro do Frio, como atesta o título.
O que nos parece mais evidente numa primeira abordagem desses desenhos é a falta de autonomia da imagem. Ou seja, ela não prescinde do texto, de que é, ao contrário, uma ilustração.
O observador recorre primeiro à legenda para saber de que personagem se trata, para, só daí, deduzir da imagem os atributos que o definem como tal.
Tendo em vista esta complementaridade entre texto e imagem, convém atentar para a importância da vestimenta de cada personagem como o principal indicador identitário da figura, seja no que diz respeito à raça, condição social, contexto cultural ou mesmo atividade desempenhada no quadro da sociedade que se observa.
A mulata da Bahia, por exemplo, se define aqui como uma nativa das Américas de sangue africano menos pela cor da pele que pelo seu modo de trajar.
O preto vendedor de leite não tem sua condição escrava mencionada na legenda, embora esteja descalço e tenha as roupas em farrapos, o que sabemos ser indícios suficientes para definir um cativo.
No grupo central, fica evidenciado o refinamento que cerca a figura da “senhora” da Bahia, seja do ponto de vista da cadeirinha em que é carregada (de madeira entalhada, com douração e adornos), seja de sua própria vestimenta (que se insinua por trás das cortinas mais sofisticada que a dos demais personagens), ou mesmo dos negros que a carregam, vestidos com esmero, embora descalços.
Não pode passar despercebido que o fato de estar sendo carregada e acompanhada é também índice claro de que se trata de uma sociedade que concede privilégios a certos indivíduos em detrimento de outros, organizando-se, portanto, hierarquicamente.
A figura seguinte é designada apenas como uma “mossa” que dança (embora pareça estática na imagem), sem que nos seja especificada sua raça ou classe social. Contudo, o fato de dançar o lundu, dança de origem africana, pode ser tomado como um sinal de que a personagem tenha de fato ascendência africana, ou, ao menos, que as manifestações desta cultura lhe sejam familiares6.
Da mesma forma, a autora julga que Julião tinha consciência deste fato ao escolher representá-la, formando, nesta prancha, um quadro representativo das “castas” da Salvador do século XVIII.
Por fim, nos é apresentado o traje das “pretas Minas da Bahia”, em que se distingue a presença da “bolsa de mandinga” pendurada à faixa na cintura, bem como das escarificações no rosto, que Julião desenha com grande atenção7.
Ainda que saibamos tratar-se de tipos que pertencem a e se movimentam dentro de um contexto urbano, nada em sua representação é indício claro disso, nem mesmo a pequena porção de chão que os suporta.
A associação ao contexto urbano se dá na leitura geral do documento, que relaciona as figuras humanas à ocupação e defesa do território. Essas figuras foram, ademais, recortadas e coladas sobre o atual suporte, o que pressupõe ter havido, por parte do autor, uma seleção e um propósito na maneira de dispô-las na prancha.
De fato, é de se notar que os tipos escolhidos e dispostos pelo desenhador no suporte revelam aos olhos contemporâneos aspectos fundamentais para o entendimento de questões estruturantes da sociedade brasileira colonial.
Naturalmente, ganham relevo de imediato os aspectos relativos à cultura material, expressa nos tecidos e na maneira de arranjá-los sobre o corpo, nos penteados e adornos, nos utensílios, meios de transporte, etc.
Por outro lado, ficam evidentes também uma hierarquia social que se reporta à gradação de cor da pele, a incidência do trabalho braçal sobre o elemento africano, bem como o alcance da influência de tradições africanas em outros segmentos sociais que não apenas os escravos.
Ao representar a cidade de Salvador, o que Julião torna visível é, portanto, uma típica organização de colônia: uma sociedade hierarquizada, que faz conviver etnias e culturas diversas e é mantida como tal por ações de controle e domínio sobre o território.
No mesmo arquivo português, existe ainda outro documento que, embora não assinado, pode ser atribuído ao mesmo autor da Elevação e Fachada (Figura 2)8.
Sua configuração geral é bastante semelhante ao anterior, sendo também dividido em quatro segmentos horizontais, embora, neste caso, os prospectos de cidades ocupem uma área bem menor, apenas as duas faixas superiores.
Ali, estão desenhadas vistas tomadas do mar de quatro cidades de possessão portuguesa na Ásia, América e África, conforme indicam as seguintes legendas:
- Configuração da Entrada da Barra de Goa. Número 1: Fortaleza de Agodá, Número 2: Forte dos Reis e Número 3: Nossa Senhora da Piedade.
- BC Prospeto que mostra a Praça de Dio vista da parte do mar em distancia de meya No.4 a Fortaleza de Dio, No.5 Entrada da Barra.
- CD Configuração que mostra a Entrada do Rio de Ianeiro em distancia de meya legoa ao mar. No.6 Na. S.a de Copacabana, No.7 o Pão de Assucar, No. 8 Fortaleza de S.a Crus.
- DE Prospeto que mostra a Ilha de Mozambique estando no seu Porto. Tem esta Ilha 850 braças de comprido, e 120 na mayor largura. No.9 a Fortaleza da d.a, he goarnecida com 40 peças de Bronze, e 20 de Ferro.
Julião se vale novamente do recurso do registro em perfil das cidades, assinalando no desenho os fortes que guarnecem seus sistemas de defesa.
A única exceção é o perfil do Rio de Janeiro, em que não vemos propriamente a cidade, mas a entrada da baía de Guanabara, onde, além dos fortes de Copacabana e Santa Cruz, ganha destaque a pedra do Pão de Açúcar, a funcionar como marco sinalizador no relevo.
É fundamental notar a maneira como Julião dispõe as vistas unidas como se fossem a representação de um mesmo território, ainda que saibamos tratar-se de cidades geograficamente muito distantes.
A vista em perfil, ademais, liga-se à prática da navegação, enfatiza a condição do território observado de longe, do risco tomado em alto mar.
Associa-se à visão daquele que se ocupa do que Murilo Marx chama de “binômio do defender-se e do aportar” (Marx 1996), que orienta a lógica de ocupação portuguesa na América.
A essas duas faixas superiores, seguem-se outras duas em que nos são apresentadas dezenove figuras humanas, algumas isoladas, outras em grupos.
Esses tipos estão identificados pelas seguintes legendas:
- Ermitão pedindo esmola
- Preta com taboleiro de doce e gorgoleta de agoa
- As pretas do Rozario
- Rede em que se transportao os Americanos para as suas chácaras, ou fazendas
- Preta que leva o jantar na cuya
- Moça dançando o landu de bunda a cinta
- Mulata recebendo carta por sua a
- Trajem das mulheres salvagems
- Traje das nhonhas de Macao
- Gentio de Goa no traje ordinário
- Gentio de Goa trajado de gala
- Bayé de Goa com traje Bramine
- Baye de Goa de Casta Chardos
- Farás de Mancilla mostrando o sol da Índia
- Tapuyas já domesticados
- Mistissa soministrando canja
- Traje dos Chinas de Macao
- Baye com dois caloens de agoa
- Canarim e vai tirar a surra do coqueiro
O que de imediato diferencia esta prancha daquela analisada anteriormente é que não há a divisão em compartimentos onde as figuras estão contidas. Aqui elas são apresentadas em fila, como num desfile, o que nos permite fazer um paralelo com os perfis das cidades, desenhados num contínuo.
Em conjunto, essas imagens evocam a extensão do domínio português sobre uma diversidade de territórios e povos pelo mundo, na medida em que reúnem dois pontos de colonização lusa na Ásia (Goa e Diu), um na África (Moçambique) e um na América (Rio de Janeiro), combinando-os a tipos humanos procedentes dessas e de outras regiões não representadas.
Naturalmente, está implícita uma certa operação de nivelamento – se é que o termo é conveniente nesse contexto – já que, em sua variedade, expressa nas vestimentas e adornos, os personagens se equivalem, pois vivem sob as mesmas regras de um governo português. Todos esses territórios e todos esses povos estão unidos. E tudo isso é Portugal.
Nesse rol de tipos humanos, Ferrez (2000) identifica como sendo provenientes do Rio de Janeiro as figuras de números um a oito, que compreendem toda a faixa superior do “desfile”, mais a índia selvagem que inicia o segmento inferior.
Já Tenreiro (2007) considera significativo que todos os tipos da faixa superior sejam brasileiros, porém não necessariamente de uma mesma região, e que os outros brasileiros representados na parte inferior sejam apenas os indígenas: uma selvagem e um casal Tapuia “domesticado”9.
Mais uma vez, atentemos para a seqüência em que os tipos são dispostos na obra, uma vez que, como Elevação e fachada, todas as figuras foram recortadas e coladas sobre este novo suporte.
Deste ponto de vista, é curioso notar como as figuras de brasileiros no segmento superior são apresentadas de modo a sugerir uma certa simetria: um casal na extrema esquerda, um à direita; de ambos os lados uma figura feminina, uma negra e uma branca, ambas com um dos braços levantados até a altura da cabeça; ocupando o centro, dois negros que carregam uma rede, o que permite também estabelecer um paralelo com o grupo central da prancha que contém o perfil de Salvador.
Na faixa inferior, Tenreiro (2007) também nota uma intenção de simetria na disposição das figuras.
A autora chama a atenção, por exemplo, para uma possível correspondência entre aquelas que ocupam as extremidades da faixa, a índia selvagem do Brasil e o “Canarim” – habitante de Karnataka (ou Canara), situada ao sul de Goa –, ambos tipos representativos de etnias que não habitam o espaço urbano.
Podem ainda ser tomadas como figuras emblemáticas de resistência à colonização, sempre segundo a opinião da autora, já que os Canarim continuavam a professar a religião hindu, rejeitando o Catolicismo, de modo análogo aos nativos brasileiros, que, além disso, recusavam a submissão à condição da escravatura.
À direita da selvagem do Brasil, Julião nos apresenta uma “Nhonha”, termo que designa uma dama de Macau, que teria como correspondência na lateral direita o chinês e a mestiça da mesma região, respectivamente a terceira e quarta figuras da direita para a esquerda.
Na sequência, vemos quatro personagens de Goa: duas “Baye”, ou mulheres, ambas representantes das mais altas castas indianas – Brâmane e Chardos – e duas figuras masculinas, os “gentios”, um vestido de gala, outro em seu traje ordinário.
Ocupando uma posição próxima do centro, o personagem designado como “Farás de Mancilla” é o representante da mais baixa das castas indianas, que se ocupa dos trabalhos que todas as outras se recusam a fazer.
A legenda que o identifica não apenas aponta seu lugar na hierarquia social, como também caracteriza sua função: carregador de mancilla, ou palanquim.
Como uma última sugestão de correspondências, é possível ainda relacionar o “Farás” ao grupo central do segmento superior, cuja ocupação também é transportar outras pessoas, nesse caso, numa rede.
Entretanto, não é demais destacar que essas são tentativas de aproximação de uma suposta lógica que teria orientado o desenhador na organização das pranchas, e essas leituras podem ser válidas ou não.
Acima de tudo, importa evitar que se busque nas obras ressonâncias de discursos pré-existentes, assim como encarar com reservas o parti pris de que o desenho corresponde sempre ao que se tem diante dos olhos.
O fato é que Carlos Julião executa uma composição e não é certo que houvesse na operação de combinar esses tipos nenhuma intenção narrativa, ou mesmo que ele tivesse consciência de tudo o que se expressa por meio do seu desenho para a visão contemporânea, já instrumentada pelos estudos antropológicos.
Ao menos no caso das figurinhas de tipos brasileiros, Julião retoma motivos que já tinham sido explorados por estrangeiros antes dele.
Um caso bastante óbvio é o da “mulher salvagem” representada na Configuração da entrada da barra…, uma visão quase arquetípica da indígena brasileira que, naturalmente, não pode ser tomada como registro de um fato visual.
O desenho de Julião nos remete às ilustrações das cartas de Américo Vespúcio publicadas no século XVI, nas quais os índios americanos eram representados esquematicamente com penas ao redor dos quadris e da cabeça, segurando arcos e flechas (Figura 3), assim como a certas figuras alegóricas da América inseridas em cartuchos de mapas.
Da mesma forma, o tema da mulher sendo carregada na rede já fazia parte do repertório de imagens sobre o Brasil desde, pelo menos, a presença holandesa no nordeste do país no Seiscentos.
É o que podemos verificar, por exemplo, no desenho nr. 104 do Thierbuch10 de Zacharias Wagener (1614-1668) (Figura 4). Ainda no contexto do Brasil Holandês, o mesmo tema surge reelaborado em linguagem decorativa da Manufatura Gobelins na tapeçaria.
Contém 110 ilustrações que abrangem temas como organismos aquáticos, aves, plantas, animais terrestres, figuras humanas, paisagens, mapas e cenas de costumes, muitas das quais copiadas dos Libri Principis de Albert Eckhout.
Todas as ilustrações são acompanhadas de comentários. Reproduzimos a seguir o comentário da prancha nr. 104:
“Desta forma deixam-se transportar, por dois fortes escravos, à casa de amigos ou à igreja, as esposas e filhas de ilustres e ricos portugueses; penduram sobre varas os bonitos tapetes de veludo ou damasco, a fim de que o sol não as queime muito forte. Também trazem atrás de si uma variedade de lindos e saborosos frutos como presente àqueles a que querem visitar.” (Teixeira 1997).
Os dois touros (Figura 5), que alude à presença africana junto aos engenhos de açúcar em Pernambuco.
É bastante evidente que tanto a Elevação e fachada quanto a Configuração da entrada da barra de Goa se organizam, do ponto de vista compositivo, a partir de uma mesma operação: a superposição de recortes de figuras humanas a vistas topográficas.
O principal efeito desta operação está em promover uma direta identificação entre as figuras e aquele “lugar”.
No que diz respeito aos próprios personagens, reforça-se nesses desenhos a ideia de um “tipo”, figura que é composta a partir da reunião de certos atributos que tornam visualmente reconhecível um determinado grupo social.
Pensando estritamente em termos desses meios de representação, não há nos trabalhos de Julião grande inovação. Tanto a constituição do tipo, quanto a associação entre o tipo e o lugar fazem referência a tradições visuais bastante difundidas na arte europeia, notadamente na cartografia e na literatura de viagem, desde, pelo menos, o século XVI.Por ora, gostaríamos de sugerir uma aproximação entre as obras de Julião e o conhecido Mapa do Brasil sob domínio holandês (Figura 6), de autoria do geógrafo, astrônomo e botânico Georg Marcgraf (1610-1644).
Assim como o Thierbuch, o mapa de Marcgraf integra a excepcional série iconográfica relacionada com o breve governo de Maurício de Nassau (1604-1679), baseado em Pernambuco entre 1637 e 1644.
Como lembra Beatriz Bueno11, a representação cartográfica de Georg Marcgraf resulta de observações e levantamentos feitos pelo próprio geógrafo durante sua estadia no Brasil, e reúne informações detalhadas sobre a rede fluvial e viária que propiciava a interiorização, a vegetação e o relevo da região, a rede urbana e as propriedades rurais, as fortalezas para defesa da costa, bem como as tribos indígenas que eram aliadas ou inimigas dos holandeses.
Ao ser transposto para a gravura em Amsterdam em 1647, o mapa foi acrescido de vinhetas atribuídas ao artista Frans Post (1612-1680), além de guirlandas e cartuchos, e um extenso texto que relatava as conquistas de Maurício de Nassau.
Esse mapa constitui, conforme Bueno, uma espécie de “relatório/cadastro das potencialidades econômicas e militares” da ocupação holandesa do nordeste brasileiro.
Ele representa as informações de um atlas condensadas em um único exemplar cartográfico, sintetizando a visão holandesa sobre o Brasil e seu potencial enquanto território estratégico para a colonização e exploração econômica.
Essa pequena digressão teve como objetivo enfatizar o fato de que os elementos acrescentados ao Mapa de Marcgraf – cartuchos, vinhetas, paisagens, guirlandas – longe de serem apenas ornamentais, ou destinados a tornar mais interessante a representação cartográfica, participam da descrição pretendida pelo editor ou por quem fez a encomenda12.
Ao reunir na mesma prancha o desenho da costa, dos cursos d’água, do engenho de açúcar, da batalha com os índios, da fauna local etc., o Mapa dá visibilidade ao que seria de outra forma invisível, constituindo-se no registro de um empreendimento histórico.
Segundo Alpers, o registro da história nos mapas e atlas holandeses do século XVII é “conciso, fatual e não interpretativo – em suma, descritivo” (1999:305). Neles, “os lugares, e não as ações ou acontecimentos, é que são a sua base, e o espaço, e não o tempo, é que deve ser transposto” (1999:305).
Segundo o entendimento da cartografia holandesa sugerida por Alpers, o Mapa de Marcgraf pode ser considerado uma descrição histórica da ocupação holandesa do nordeste brasileiro.
E esse ponto de vista nos parece útil para acercar as duas obras de Carlos Julião de que vimos tratando até aqui. Por um lado, a comparação de Julião com Marcgraf pode servir a elucidar a reunião um tanto insólita de prospecto, perfil, planta, elevação, texto e figuras humanas num mesmo suporte, ao mesmo tempo em que elimina a possibilidade de encarar a presença dessas figuras nas pranchas como mera decisão decorativa.
Por outro lado, essa hipótese nos permite propor, por exemplo, que a Elevação e fachada seja entendida como uma descrição histórica do desenvolvimento de Salvador, que se demonstra por meio da presença das instituições sinalizadas no prospecto, da apresentação do seu sofisticado sistema defensivo, assim como da complexidade do seu tecido social, expressa pelos tipos humanos ali representados.
É da capacidade dos portugueses de transporem sua civilização para a América que se fala.
Certo que Salvador perdera seu status de capital para o Rio de Janeiro, mas continuava a ser, e seria ainda até a chegada da família real em 1808, o porto de maior volume de comércio do mundo colonial português, de acordo com Boxer (2002:241).
A antiga capital do Brasil era um ponto estratégico, portanto, para a coroa portuguesa no sentido da representação dos seus domínios ultramarinos.
É possível ler a Configuração da entrada da barra… na mesma chave? Nos parece que sim, mas, para tanto, é necessário trazer à discussão alguns pontos ainda não abordados.
Carlos Julião foi designado para servir no Estado Português da Índia em 1774, lá permanecendo por seis anos. É Boxer quem faz notar que, neste mesmo ano, foram enviados a Goa um novo vice-rei e um novo arcebispo, ambos com explícitas instruções do próprio marquês de Pombal (1699-1782) para “fazer cumprir a legislação anti-racista que seus antecessores tranquilamente arquivaram” (Boxer 2002:269).
A questão racial na Índia portuguesa teve conotações diversas daquelas que caracterizaram a colonização da América.
As penosas condições da viagem da Carreira da Índia – uma viagem que durava de seis a oito meses em navios abarrotados, onde grassavam doenças variadas e reinava uma altíssima taxa de mortalidade (dizia-se que morriam no percurso entre 1/3 e metade dos embarcados) –, somadas à notória insalubridade de Goa, não constituíam grande atrativo para imigração de mulheres portuguesas, que sempre foram pouco numerosas no oriente luso.
Os portugueses imigrados, a maioria com poucas condições de custear a viagem de volta a Lisboa, acabavam por se casar com nativas convertidas ao cristianismo.
O contingente populacional mestiço era, portanto, bastante numeroso. E esse contingente era, via de regra, preterido no acesso a cargos públicos ou mesmo na possibilidade de ascensão na carreira eclesiástica.
O Alvará régio de 2 de abril de 1761 foi a primeira tentativa de equiparar o estatuto legal e social dos súditos nascidos no oriente, desde que cristãos, com o dos naturais do Reino.
Assinado pelo rei e pelo então conde de Oeiras, o Alvará ordena que “todos os Meus Vassallos nascidos na Índia Oriental, e Domínio, que tenho na Ásia Portugueza; sendo Christãos e baptizados; e não tendo outra inhabilidade de Direito, gozem das mesmas honras, preeminências, prerrogativas, e privilégios, de que gozão os naturaes destes Reinos, sem a menor differença13 .
Apesar de as penas serem severas para quem descumprisse a lei – iam desde a perda de títulos e privilégios ao pagamento de multas e degredo em Moçambique –, foi necessário reiterá-la dois anos depois em termos mais enérgicos.
Entretanto, nada foi feito pelas autoridades locais no sentido da efetiva implementação das ordens contidas no Alvará, o que fez com que Pombal continuasse a insistir na validação de uma política anti-racista na Índia.
Segundo Boxer, era central para sua lógica de governo que os portugueses agissem no ultramar com “as mesmas estratégias usadas pelos romanos em suas conquistas” (2002:270), o que pressupunha incluir os nativos no sistema de concessão de cargos e benefícios, sem o que, o clima de tensão social se tornaria insuportável para os portugueses.
Não nos parece casual que, nesse contexto em que se reacende o debate sobre a promoção de igualdades sociais e que são enviados a Goa novas autoridades políticas e religiosas, Julião execute um desenho que une territórios geograficamente distantes e dispõe em fila povos culturalmente distintos.
Se tomarmos a Configuração da entrada da barra… como uma descrição histórica, nos termos colocados por Alpers, o “nivelamento” operado por Julião do ponto de vista da representação, a que nos referimos anteriormente, torna-se bem mais significativo.
Ele encontra sua contrapartida na própria política de dominação portuguesa no oriente, permitindo supor que a prancha dá visibilidade à famosa frase de Pombal: “Sua Majestade não distingue seus vassalos pela cor, mas pelos méritos de cada um” (apud Boxer 2002:269).
De toda forma, não nos parece exagerado afirmar que a presença dessas “figurinhas” é o que confere interesse propriamente artístico ao trabalho de Carlos Julião.
Sem dúvida, elas marcam seu diferencial diante da produção iconográfica resultante do trabalho dos desenhadores militares, autores de parte tão significativa dos registros visuais da América Portuguesa no Setecentos.
Basta lembrar que, sem elas, a Elevação e fachada seria mais uma das cópias conhecidas do prospecto de Salvador levantado por José António Caldas.
2. Figurinhas de Brancos e Negros: um álbum de tipos brasileiros
É preciso também considerar que o fato de recortar e recombinar essas figurinhas em diferentes suportes sugere a existência de um repertório de tipos constituído a priori pelo desenhador. Nesse sentido, merece atenção o conjunto de desenhos aquarelados que compõem os Riscos Iluminados ditos de figurinhos de Brancos e Negros dos usos do Rio de Janeiro e Serro do Frio, pertencente ao acervo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Rio de Janeiro.
Composto por 43 pranchas de ilustrações não acompanhadas de texto, este manuscrito não traz indicação de autoria, mas é tradicionalmente atribuído a Julião pela semelhança e mesmo direta correspondência entre muitas de suas figuras e as que compõem as pranchas citadas acima.
Originalmente, o conjunto dos desenhos atribuídos a Julião fazia parte de um volume que reunia três obras, a saber: Noticia summaria do Gentilismo da Ásia com dez riscos iluminados ditos de figurinhos de Brancos e Negros dos uzos do Rio de Janeiro, e Serro do Frio Ditos de Vazos e Tecidos Peruvianos14.
Pouco depois, o volume foi adquirido nos Estados Unidos por Rubens Borba de Morais, então diretor da Biblioteca Nacional, sendo incorporado ao acervo da instituição em 1947.
Segundo um documento assinado por Lygia Cunha, datado de 11 de janeiro de 1971, e que está colado à contracapa do volume que contém essas obras, o álbum com os desenhos de figurinhas brasileiras teria sido desmembrado de sua encadernação original em 1950, quando os Riscos iluminados passaram a compor um volume separado.
Há, no entanto, um equívoco na interpretação da nomenclatura dos diferentes manuscritos. Os “riscos iluminados” na verdade designam as dez ilustrações da Notícia sumaria do Gentilíssimo da Ásia, enquanto os “figurinhos de brancos e negros” são designados apenas como Ditos de figurinhos….
No entanto, tradicionalmente, o conjunto das figurinhas desenhadas por Carlos Julião é conhecido como “Riscos iluminados de figurinhos de brancos e negros…“, título utilizado inclusive na edição facsimilar do manuscrito, publicada em 1960 pela FBN (Cunha 1960).
A primeira parte do volume, a Notícia sumária…, contempla em 107 capítulos aspectos da religião hindu, em especial as formas de culto de suas divindades (devas).
O texto é acompanhado de dez ilustrações que diferem bastante, tanto em técnica quanto estilo, das demais que compõem as outras duas partes do volume.
Outras três cópias deste manuscrito são conhecidas e encontram-se nos acervos da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e da Fundação Oriente, ambas em Lisboa. Um dos exemplares da BNP – o códice 607 da Seção de Reservados – é transcrito e comentado na Collecção de noticias para a história e geografia das nações ultramarinas, publicada pela Academia de Ciências de Lisboa (ACL).
Afirma-se no prefácio dessa edição que um manuscrito original de autoria de um missionário jesuíta português na Índia no início do Século XVII foi encontrado no Cartório dos Padres da Companhia de Jesus após a expulsão da ordem de Goa em 1759.
Esse manuscrito teria sido copiado, e a cópia foi remetida à ACL por um de seus sócios correspondentes, Francisco Luiz de Menezes, capitão de Ordenanças de Goa. Posteriormente, o códice passou à propriedade da BNP.
O códice, que contém 107 capítulos e 11 ilustrações, foi encadernado com outros dois textos, como Relação histórica e Profecia política, publicados posteriormente em Lisboa.
O exemplar da Fundação Oriente, por sua vez, apresenta os mesmos 107 capítulos, mas ilustrados com 15 aquarelas.
No verbete que acompanha sua entrada no catálogo Presença portuguesa na Ásia (Pereira 2008), é afirmado que o manuscrito data do final do século XVIII ou início do XIX, é proveniente de Goa e pertenceu a José Câncio Freire de Lima, membro do Conselho de Governo do Estado da Índia (1840).
O autor do verbete também sugere que o original do qual derivam todas as cópias “não poderá ser anterior a 1764, uma vez que, no texto, o autor refere-se aos ingleses como senhores do território entre Allahabad e Bengala, após a batalha de Buxar, em outubro de 1764” (Pereira 2008:65).
Seja qual for a data do manuscrito original, é fato que as cópias da Notícia sumária… que se encontram em coleções portuguesas são todas provenientes de Goa e datam da segunda metade do século XVIII. Cientes da presença de Carlos Julião naquela região entre 1774 e 1779 – como teremos oportunidade de averiguar no capítulo 2 deste trabalho – seria natural supor que o exemplar da FBN tenha sido copiado por ele em seu período de serviços na Índia.
Contudo, como já foi notado, nada do ponto de vista do estilo aproxima as ilustrações deste códice dos desenhos atribuídos a Julião nos Ditos de figurinhos de brancos e negros…, restando, portanto, admitir que a hipótese de considerá-lo autor da cópia da Notícia sumária… deve-se somente à presença de ambos os manuscritos na mesma encadernação.
Ora, a reunião de diferentes documentos num mesmo volume não é indicativo seguro de autoria, uma vez que a operação obedece, na maioria das vezes, a critérios estabelecidos pela conveniência do proprietário. A questão da autoria tem de ser tomada com atenção, nesse caso, não sendo de todo óbvio admitir que a cópia do códice indiano no acervo da FBN tenha sido executada por Julião.
A parte referente aos Ditos de vasos e tecidos peruvianos é composta por 33 pranchas de ilustrações em aguada de sépia, não acompanhadas de texto. Nessas imagens, é curioso notar a atenção dedicada pelo desenhista às padronagens que ornam vasos e têxteis, assim como a certos instrumentos como teares, para confecção de tecidos e rendas. Abaixo do título que abre o álbum, há uma anotação a grafite que afirma:
“os dezenhos destes vazos forão tirados dos originaes encontrados no galeão Hespanhol q deo à costa em Peniche e q vinha carregado de Prata no Reinado de D. Maria 1a”.
O mais célebre naufrágio ocorrido na costa de Peniche no período mariano foi o do navio de guerra espanhol San Pedro de Alcantara, em fevereiro de 178616.
Com uma tripulação de quatrocentas pessoas, entre os quais alguns rebeldes peruanos do movimento separatista comandado por Túpac Amaru (1780-1781), o navio saíra do Peru dois anos antes e havia feito uma escala de quatro meses no Rio de Janeiro para reparações, pois, como era sabido, o carregamento de prata, ouro e cobre embarcado era superior à sua capacidade de transporte.
Nesta carga encontrava-se ainda um importante conjunto de peças de cerâmica pré-hispânica da cultura Chimu, que havia sido coletado no Peru por dois botânicos europeus.
O valor da carga era tamanho que seu desaparecimento deu início a um enorme movimento de recuperação promovido pelo governo espanhol.
Em três anos, quase a totalidade dos itens transportados pelo San Pedro de Alcantara foi recolhido do fundo do mar por mergulhadores de diversas nacionalidades contratados pela coroa espanhola.
É claro que somente um cotejo mais criterioso entre os desenhos do manuscrito da FBN e os objetos cerâmicos recuperados do San Pedro de Alcantara poderia atestar a existência ou não de uma relação direta entre eles.
Em todo o caso, não parece muito provável que outro navio espanhol com carga de prata e “vasos peruvianos” tenha colidido com os rochedos em Peniche no mesmo período, o que concorre para a sustentação da hipótese.
Em se tratando de um fato de grande repercussão e de uma carga de notável raridade, justifica-se o registro em desenho desses itens, seja a título de curiosidade ou obedecendo à requisição de um superior.
De toda forma, vale para este manuscrito o mesmo afirmado acima com relação à Notícia sumária. Ou seja, o fato de estar encadernado junto com os Ditos de figurinhos de brancos e negros não é motivo suficiente para assumir que a autoria desses desenhos se deva a Carlos Julião17.
Contudo, isso não é compatível com a hipótese de que os desenhos sejam referentes à carga do San Pedro de Alcantara, a incumbência da vistoria foi cumprida por Julião entre 1791 e 1795, alguns anos depois do final dos trabalhos de recuperação da carga do navio.
Já os Ditos de figurinhos de brancos e negros18 ocupavam originalmente a parte central do volume, conforme ainda é possível perceber pelo vazio na encadernação.
O álbum de desenhos atribuídos a Julião se abre com uma cena alegórica que evoca o que parece ser uma vitória militar, já que vemos um personagem fardado, a cavalo, a brandir a espada na mão direita sob um arco de triunfo, sendo saudado por figuras do povo situadas em primeiro plano (Figura 10).
No arco de triunfo, logo abaixo do frontão, percebem-se as armas de Portugal, enquanto na ruína que ocupa a lateral esquerda do desenho, há um mastro caído onde se vê a bandeira espanhola.
Entre as duas edificações, vêem-se soldados fardados como a figura principal que conduzem um grupo de outros soldados para o fundo da cena.
A alegoria é interpretada por Lygia Cunha ((1960:XIII) a partir de uma inscrição a grafite nas margens do desenho, segundo ela, escrita com “letra do século XVIII”: “victoria alcançada por Pinto Bandeira de Minas Geraes contra os Hespanhoes, provavelmente na guerra do sul em 1762”.
Assim, conclui a autora, a alegoria seria alusiva à mais importante vitória comandada por Rafael Pinto Bandeira (1740-1795), coronel do corpo de cavalaria do Rio Grande do Sul (e não de Minas Gerais, como afirma a inscrição): a tomada e destruição do forte espanhol de Santa Tecla, em 1776, que pôs fim à invasão castelhana no atual território riograndense.
Pinto Bandeira é um nome tão lendário19 quanto controverso, que esteve envolvido em diversas campanhas militares decisivas para a definição das linhas de fronteira na porção sul da América portuguesa.
Visto alternadamente como herói e malfeitor, Pinto Bandeira foi nomeado para a governança militar do Rio Grande de São Pedro do Sul, ao mesmo tempo em que sofria abertas acusações pelo que chamaríamos hoje de “enriquecimento ilícito” por contrabando.
Essas acusações resultaram num processo-crime contra ele que só foi arquivado em 1780 por um decreto real de d. Maria I. Seus maiores opositores eram o governador da capitania, José Marcelino de Figueiredo (1735-1814)20, que acabou por perder o posto, e o vice-rei Luís de Vasconcelos (1742-1809).
Apesar da substituição do governador, Vasconcelos continuaria ainda a tentar reunir provas que incriminassem Pinto Bandeira.
Ciente desta situação, o coronel se propôs, nas palavras de Augusto da Silva (1999:135), a “passar por cima do vice-rei e buscar apoio na metrópole”.
Assim, Pinto Bandeira chegaria a Lisboa em fevereiro de 1789, onde permaneceria por cerca de um ano. Quando de seu retorno, contava não apenas com o reconhecimento de sua atuação no alargamento das fronteiras meridionais do Brasil, como com uma patente de brigadeiro.
Figuras 10 a 12 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 1 a 3 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 13 a 16 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 4 a 7 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Sem dúvida, a conjuntura internacional beneficiou Bandeira nesta ocasião, já que no tumultuado ano de 1789 começavam a agravar-se as divergências que acabariam por colocar Portugal e Espanha, aliados respectivamente de Inglaterra e França, em lados opostos do conflito europeu, o que certamente teria reverberação nos territórios americanos.
Para a coroa portuguesa, portanto, era fundamental poder contar com a experiência de guerra contra os espanhóis que Pinto Bandeira já possuía.
O fato é que, já em agosto de 1790, ele despachava documentos como Comandante General da Capitania de São Pedro (Silva 1999:137).
Há apenas uma imagem de Pinto Bandeira reproduzida na dissertação de Augusto da Silva (1999) a ele dedicada.
A ilustração não traz indicação de autoria, data ou fonte, mas é ela que nos permite afirmar que se trata do mesmo personagem que brande a espada a cavalo na página de rosto do manuscrito da FBN [Figura 9].
Sendo assim, se confirma a hipótese sustentada por Cunha de que esta cena alegórica celebra as vitórias de Pinto Bandeira contra os espanhóis no sul.
A temática militar prossegue nas estampas de dois a sete dos Ditos de figurinhos de brancos e negros…, em que estão representados diversos tipos de uniformes de oficiais [Figuras 11 a 16] e uma cena de conteúdo mais anedótico, em que uma moça se despede chorando de um oficial.
Eles foram identificados por José Washt Rodrigues (1891-1957) em 1949, segundo atesta um documento datilografado e assinado por este artista e historiador, que foi anexado à página de abertura do álbum, e se intitula:
“Esclarecimento sobre alguns figurinos militares existentes no livro de estampas originais, em cores, do último quartel do século XVIII adquirido nos EUA do Norte pelo governo brasileiro, e atualmente na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro”.
A denominação apontada por Rodrigues serviu de base para os títulos com que Ferrez (2000: v.1, 115) identifica as estampas em seu Iconografia do Rio de Janeiro, assim como às legendas citadas por Cunha na edição facsimilar do álbum (1960). Até mesmo a designação da estampa sete como sendo uma “cena romântica” se repete nos dois autores.
O tema dos uniformes militares é sem dúvida um dos mais recorrentes no que diz respeito à representação da figura humana no Portugal setecentista, o que pode ser atestado pela sua presença em praticamente todos os arquivos consultados, notadamente o ANTT [Figura 17], o AHU [Figura 18] e a FBN [Figuras 19 e 20].
Esses desenhos circulavam em vários formatos, geralmente como anexo de documentos enviados das colônias para o Reino. Assim, nos deparamos durante a pesquisa com figurinos militares de São Tomé e Príncipe, Moçambique e Macau, além de Brasil.
Com frequência os desenhos acompanhavam os “Mapas de tropas”, tabelas em que eram enumerados e quantificados todos os oficiais e soldados que compunham cada regimento das tropas pagas e auxiliares de determinada região.
Certamente, devem ser entendidos como parte do processo de reorganização do exército português encabeçado pelo conde de Lippe (1724-1777) na década de 1760, de que trataremos no próximo capítulo.
Foi Lippe quem dotou o exército luso pela primeira vez de um plano de uniformes em 1764, que abrangia todas as tropas do Reino e Conquistas, e não surpreende que os desenhos de figurinos militares comecem a se multiplicar a partir desta data.
É importante notar que a confecção dos vários elementos que compunham o uniforme de oficiais e soldados servindo em Portugal e no ultramar – como botões, calçados, galões, chapéus, armas, etc. –, assim como a aquisição dos tecidos e a própria fabricação dos fardamentos, eram centralizadas no Arsenal Real do Exército em Lisboa.
Parece lógico concluir que os desenhos de figurinos militares, acompanhados dos Mapas de tropas, servissem também para que no Arsenal se pudesse quantificar o material indispensável para vestir as forças militares de cada região.
Nunca é demais lembrar que o exército português compreendia tropas servindo na Europa, Ásia, África e América e a visualização dos uniformes possibilitada pelo desenho certamente facilitava a logística de fardar todos os contingentes segundo as recentes instruções do conde de Lippe.
Com relação à figuração, em nenhum gênero – se é que se pode considerar os figurinos como um “gênero” – é mais patente a questão do desenho constituído a partir de modelos.
As diversas séries são muito semelhantes, divergindo apenas no que diz respeito ao traço, ou propriamente ao estilo pessoal do autor, segundo tenha maior ou menor destreza na representação da figura humana, mais ou menos habilidade no uso da aquarela.
Na verdade, trata-se frequentemente da mesma figura vestida de modo diferente: quase não há variações no posicionamento das mãos – que podem estar apoiadas num bastão, segurando uma arma ou sobre o peito –, ou na organização corporal.
Figuras 19 e 20 – José Corrêa Rangel. Ilustração de Guarnição do Rio de Janeiro com seus uniformes e mapas do número dos regimentos pagos e dos auxiliares. Feito por José Corrêa Rangel. Ajudante de infantaria com exercício de engenheiro, 1786 – Aquarela e nanquim sobre papel – Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 21 – Autor desconhecido. Uniformes gerais das tropas da Espanha, 1778. Água-forte e aquarela sobre papel. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, Lisboa (Cota 4309_I-4-55-64-1)
E os figurinos militares de Julião fazem parte desse universo dos exércitos de “soldadinhos de chumbo”. As matrizes desses desenhos devem ser buscadas na gravura, de modo especial nas estampas que representam Mapas de tropas, como é possível comprovar pela Figura 21.
Aos uniformes militares segue-se um grupo de quatro ilustrações em que os personagens são casais indígenas [Figuras 22 a 25].
Figuras 22 a 25 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 8 a 11 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Na estampa oito surge pela primeira vez um cenário onde as figuras se movimentam, nesse caso, composto de rio, montanhas e árvores.
O casal aparenta ser ainda selvagem, já que ambos carregam arco e flecha e acabam de abater uma onça que sangra em primeiro plano.
Novamente, chamamos a atenção para representação arquetípica do indígena brasileiro: a figura da índia com um seio só evoca os antigos mitos das guerreiras amazonas, enquanto o índio, embora paramentado de cocar e saia de penas, é representado barbado como um europeu.
Os demais casais parecem bem mais pacíficos, sendo o da estampa onze exatamente igual aos Tapuias domesticados representados na Configuração da entrada da barra….
A estampa dez é um tanto mais curiosa em termos de composição, pois tem a mesma figura espelhada, recurso também utilizado na Figura 15.
A presença de elementos vegetais e alguma sugestão de relevo, que é comum às quatro ilustrações, concorre para a criação de sentido na imagem, reforçando o pressuposto de que o habitat do indígena é o ambiente natural, ainda não transformado pela civilização.
De certo modo, esses atributos alegorizam os personagens representados, constituindo-se em distantes reminiscências das pinturas etnográficas de Albert Eckhout (1610-1666).
Sucedem-se aos casais indígenas outras três ilustrações de mulheres sendo transportadas [Figuras 26 a 28], sendo a primeira numa rede, e as demais por escravos negros que portam as famosas cadeirinhas nos ombros.
A estampa doze [Figura 26] é semelhante à figura central da prancha da Configuração da entrada…, embora lá os carregadores sejam negros.
Já na estampa treze [Figura 27], a figura central do grupo das três mulheres que seguem a cadeirinha, que Lygia Cunha (1960) identifica como sendo escravas, é também idêntica à mulata de Elevação e fachada.
O grupo da estampa quatorze [Figura 28] se repete na mesma obra relativa ao prospecto de Salvador.
É importante assinalar que o tema das cadeirinhas encontra forte ressonância no imaginário sobre a sociedade portuguesa no oriente desde o século XVI.
Tanto Chaudhuri quanto Russell-Wood21 nos lembram que o desejo de enriquecimento e distinção social era o principal mote dos portugueses que se dirigiam aos Estados da Índia, e que a ostentação pública era prática corrente da sociedade lusa no ultramar.
Nesse contexto, os meios de transporte serviam a distinguir os nobres e fidalgos, que se faziam carregar em palanquins, seguidos de séquitos de escravos.
Essa prática, assim como a pompa no vestir-se, é notada e criticada pelos vários cronistas que se ocuparam da Índia portuguesa, entre os quais o mais famoso é certamente o holandês Jan Huygen van Linschoten (1563-1611), de quem voltaremos a falar oportunamente.
Destacamos aqui, a título de comparação, uma gravura da sua Histoire de la navigation (…) aux Indes Orientales, em que vemos uma portuguesa e suas filhas sendo carregadas numa liteira. [Figura 29]
As estampas quinze a dezessete referem-se a vestimentas de personagens brancos e vemos repetir-se o recurso utilizado pelo desenhador nos figurinos militares.
As mesmas figuras são replicadas com pequenas variações no posicionamento das cabeças e vestidas de modo diverso. Na verdade, a vestimenta propriamente não varia, o que mudam são as cores e padronagens dos tecidos e adornos [Figuras 30 a 32].
Nessas ilustrações é mais evidente um traço tão característico das aquarelas de Julião que é fazer com que o casaco envolva a personagem de modo a revelar o seu talhe na parte posterior.
Figuras de 26 a 28 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 12 a 14 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 30 a 33 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 15 a 18 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 34 a 37 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 19 a 22 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Nas estampas dezoito e dezenove, são apresentadas cenas com personagens que interagem [Figuras 33 e 34]. A primeira, aparentemente uma cena de rua, nos apresenta um negro que serve leite a uma senhora sendo ambos observados por um homem (semelhante à figura masculina da estampa quinze).
A outra é definida por Cunha (1960) como sendo uma cena de caça aos patos e não parece ter muita relação com as demais. As vestimentas de mulheres brancas reaparecem nas estampas de vinte a 22 [Figuras 35 a 37], também caracterizadas pela repetição do mesmo personagem que tem apenas o traje, os ornamentos e o posicionamento das mãos alterados.
Na estampa 23 [Figura 38], vemos outra cena classificada por Cunha como uma “cena romântica”, em que um homem de bengala, “vestido à moda do século XVIII” (Cunha 1960), entrega a uma jovem uma carta onde se lê: “À Sra. Joanna Rosa”.
Mais um casal branco ocupa a estampa 24 [Figura 39], sendo a figura masculina semelhante às que ilustram as estampas dezesseis e dezessete. A estampa 25 [Figura 40] nos apresenta duas figuras femininas que bem poderiam ser comparadas novamente à mulata de Elevação e fachada.
A partir da estampa 26, todas as demais se referem a personagens negros. As cinco primeiras, de 26 a 30 [Figuras 41 a 45], são dedicadas exclusivamente aos trajes, enquanto as quatro seguintes, de 31 a 34 [Figuras 46 a 49], colocam em cena os negros vendedores de rua.
Reencontramos aqui a vendedora de frutas em versão idêntica à de Elevação e fachada, como também o vendedor de leite do mesmo prospecto de Salvador, e a vendedora de doces da Configuração da entrada da barra de Goa… em versões ligeiramente alteradas.
Curioso notar que os vendedores de rua são figurados de maneira a incorporar diversas sugestões de movimento, ao contrário dos demais personagens vistos até aqui.
As estampas 35 a 39 [Figuras 50 a 54] talvez sejam as ilustrações mais reproduzidas deste conjunto, sempre utilizadas quando se trata de ilustrar textos sobre festas no período colonial no Brasil.
De fato, elas se reportam às festas de encenação da coroação dos reis e rainhas do Congo ligadas às Irmandades de Nossa Senhora do Rosário do Pretos. São também as estampas que mais diferem, do ponto de vista do estilo, das demais ilustrações do manuscrito, visto que englobam diversos personagens em séquito com variada movimentação corporal e adereços.
Figuras 38 a 41 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 23 a 26 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 42 a 45 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 27 a 30 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 46 a 49 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 31 a 34 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Muito do encanto dos desenhos desta série está justamente na miniaturização desses personagens, tratados cada qual com suas roupas coloridas, seus instrumentos musicais, adornos de cabeça e movimentos de dança. Nas estampas 36 e 39, é curioso notar como, diante de um número maior de figuras, o autor as compõe individualmente, fazendo com que a conformação da “cena” resulte da somatória desses elementos.
As figuras não estão submetidas a nenhuma ordenação espacial prévia, ao contrário, o seu posicionamento no papel é que conforma o espaço. Vale notar ainda que essa espécie de guarda-sol sob o qual caminham o rei e a rainha no cortejo é um conhecido atributo dos reis africanos, bastando mencionar aqui dois exemplos em que ele se faz presente: a tapeçaria O rei negro carregado em triunfo, da série Nouvelles Indes (Manufatura Gobelins) e a Alegoria da África [Fig.59], gravada a partir de desenho de Charles Le Brun (1619-1690).
As últimas ilustrações do álbum fazem referência ao trabalho de extração nas “catas” de diamantes, possivelmente do Serro do Frio (Diamantina), conforme se lê no título do volume. Vemos então, na estampa 40 [Figura 55], os negros quebradores de pedras, que reaparecem na parte esquerda da estampa 41 [Figura 56], uma vista mais abrangente e que contempla mais etapas da técnica de extração. A lavagem do cascalho é representada na estampa 42 [Figura 57], caracterizada pela presença de uma estrutura construtiva desenhada em perspectiva extraordinariamente acentuada, que se constitui visualmente num estranho paralelepípedo encravado numa paisagem de colinas e volumes delineados com maior graça.
Ilustração semelhante surge no início do século XIX no livro Travels in the interior of Brazil (1812) do mineralogista britânico John Mawe (1764-1829) [Figura 60], o primeiro estrangeiro a ter autorização para visitar o distrito aurífero de Minas Gerais.
Por fim, a ilustração 43 [Figura 58], que encerra os Ditos de figurinhos de brancos e negros…, nos apresenta um escravo despido para ser inspecionado pelos feitores.
Dentre as 43 ilustrações comentadas, dezessete (cerca de 40%) referem-se exclusivamente aos modos de vestir de diferentes extratos da população do Brasil, incluídos aqui os figurinos militares.
Outros temas envolvem tipos indígenas (dos mais selvagens aos mais civilizados), ilustrações relativas a práticas sociais (entre os quais meios de transporte, vendedores ambulantes, festas africanas), além de uma importante (e lucrativa) atividade extrativa.
Já tivemos oportunidade de notar a importância que Julião confere a todos os elementos constitutivos do traje e à eventual presença de marcas identitárias como caracterizadores dos personagens representados.
Em geral, a figura prescinde de cenário, só utilizado nos casos em que a presença de outros elementos narrativos colabora para a criação de sentido na imagem.
Figuras 50 a 54 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 35 a 39 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figuras 55 a 58 – Carlos Julião (atribuído a). Estampas 40 a 43 de Ditos de figurinhos de brancos e negros…, sem data (século XVIII). Aquarela sobre papel. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Viemos até aqui examinando as obras de Julião no sentido de avaliar em que medida poderíamos estar diante de um trabalho fundado em codificações da representação e quais tradições poderiam estar ali implicadas.
Resta indagar sobre a motivação de Carlos Julião na constituição deste conjunto de ilustrações, organizadas em forma de álbum.
Convém ter em vista que subentende-se na própria noção de álbum que os motivos tenham sido apreendidos no mundo e reorganizados numa outra ordem. Assim sendo, é possível considerar que o álbum da FBN tivesse sido composto tendo em vista um destinatário?
A este respeito, Lygia Cunha comenta:
o conjunto iconográfico foi preparado por Carlos Julião no período em que, viajando por plagas distantes, ia reunindo o que encontrava de mais característico, com o intuito de organizar um álbum de curiosidades, talvez para presenteá-lo a um superior hierárquico, hipótese plausível à vista do assunto que ilustra a prancha nº 1.
De fato, a composição alegórica que abre o volume leva a pensar numa possível dedicatória, cujo destinatário talvez fosse o próprio brigadeiro Rafael Pinto Bandeira. Já tivemos a oportunidade de verificar que Bandeira permaneceu em Lisboa por quase todo o ano de 1789. Sendo este um militar, assim como Julião22, nessa altura capitão de uma das companhias do Regimento de Artilharia da Corte, é bastante razoável supor que ambos tenham se conhecido durante este período.
As façanhas de Bandeira nas guerras contra os espanhóis no sul do Brasil possivelmente fizessem dele um nome reputado no exército português, o que se traduziu na sua promoção a brigadeiro.
Considerar que Julião tenha lhe oferecido um álbum de desenhos com tipos brasileiros como sinal de admiração ou amizade não é de todo descabido, embora a hipótese ainda necessitasse de evidências mais contundentes. Uma encomenda por parte de Bandeira também não pode ser descartada.
Ainda com relação a este argumento, se a página de rosto foi desenhada especialmente em homenagem ao destinatário do álbum, é possível supor que todo o conjunto de ilustrações também tenha sido composto na mesma ocasião, com o intuito de ser ofertado.
Ou seja, é possível supor que Julião, a partir de um repertório mais amplo de desenhos, que incluía personagens oriundos de diversas partes do mundo português, tenha selecionado alguns tipos brasileiros para constituir um álbum que desejava ofertar.
Vários motivos nos levam a esta hipótese: em primeiro lugar, sabemos que ele desenhou outros tipos que não só os brasileiros, como se pode verificar pelos indianos e chineses presentes na Configuração da entrada da barra de Goa…; em segundo lugar, se as figuras das pranchas do GEAEM foram recortadas e coladas junto aos prospectos de cidades, é porque existiam previamente em algum outro suporte ou foram de lá copiadas; finalmente, o fato de que várias figuras se repetem no álbum da FBN e nas pranchas do GEAEM é indício de que o autor tinha como prática multiplicar ou “reutilizar” os tipos e que, portanto, existia um conjunto de modelos aos quais ele se reportava para fazê-lo.
Em vista disso, em nossa opinião, o álbum da FBN deve ser encarado como resultante de uma seleção de desenhos feita a partir de um repertório mais extenso, seleção esta que provavelmente tinha como finalidade compor um volume a ser oferecido, ou que lhe tivesse sido encomendado.
3. As Figurinhas na Pintura
Colabora também para esta hipótese a existência de duas pinturas que atualmente pertencem ao acervo do Instituto Ricardo Brennand, em Recife [Figuras 61 e 62].
As telas foram adquiridas na Sotheby’s de Nova York e constituíam o lote 400 do leilão de 28 de Janeiro de 1999 (Sotheby’s 1999) 23. No catálogo, foram intituladas apenas Peoples of Lisbon and Portugal, Rio de Janeiro, Brazil, and Angola.
Não há menção à proveniência das peças. No verbete do catálogo, afirma-se que a atribuição a Carlos Julião foi feita pelo diplomata Mário Calábria.
De fato, não há como não relacionar as pinturas em questão à obra de Julião, já que elas nos apresentam um elenco de figuras humanas, entre as quais é possível reconhecer alguns personagens com que já nos deparamos nas obras analisadas anteriormente.
Além disso, os tipos estão organizados na mesma estrutura do “desfile” que tivemos oportunidade de observar na Configuração da barra de Goa, incluindo-se agora, surpreendentemente, tipos provenientes do Reino e não apenas das Conquistas, como ocorria nos demais trabalhos.
Vale notar, contudo, algumas diferenças significativas com relação a certas soluções formais adotadas, como, por exemplo, a do suporte em que se assentam os personagens, bastante diversa das obras já vistas, bem como o fato de que algumas das figuras apresentam muito maior expressividade em termos gestuais e de sugestão de movimento corporal.
Cada uma das telas é dividida em três faixas horizontais
Cada uma das telas é dividida em três faixas horizontais em que os tipos são apresentados com legendas em português e italiano.
Na faixa superior da pintura 61, ocupando posição central no contexto da composição, vê-se o símbolo da cidade de Lisboa – a caravela com dois corvos24 – contornada por um ornamento dourado ao estilo de uma talha rocaille, encimado por uma coroa real.
Abaixo deste brasão de armas, lemos a seguinte inscrição: “Quadro que representa as Armas da Cidade de Lisboa e as diversas maneiras de vestir de Portugal principalmente da Corte. Quadro che rapresenta l’armi della Cittá di Lisbona e le diverse maniere di vestire di Portugallo e particolarmente di Lisbona, 1779”.
Esta inscrição permite, portanto, datar as telas do ano de 1779, o que indica que são contemporâneas da prancha da Elevação e fachada.
Em outra versão, suas relíquias foram trazidas do Algarve para Lisboa numa caravela que foi acompanhada em todo o trajeto por dois corvos.
Nessa pintura (figura 61), estão representados 24 tipos, todos referentes ao Portugal metropolitano, com exceção do primeiro soldado, este brasileiro.
Os personagens são identificados pelas seguintes legendas (iniciando na faixa superior, da esquerda para a direita):
- Sargento Mor das Minas / Sargento Maggiore delle Mine del Brasile
- Sargento Mor Auxiliar / Sargento Maggiore della Milizia Urbana
- Capitão Mor Auxiliar / Capitano Maggiore della Milizia Urbana
- Dezembargador / Un Ministro del Tribunale
- Porteiro da Caza / Portiero del Palazzo
- Soldado de Malta / Soldato di Malta
- Sargento Auxiliar / Sargento della Milizia Urbana
- Soldado Auxiliar / Soldato della Milizia Urbana
- Huma mulher de caza com a sua / Una Femina con il Capotto con la Sua
- Escrava / Schiava
- Mulher do Porto / Femina del Porto
- Huma Parteira / Mammana
- Huma Fidalga a pé em ta feira Santa / Una Signora vestita di Settimana Santa a piedi e facendo la visita delle Chiese il Giovedí Sto.
- Huma mulher de manto com a sua / Una Femina con il manto e la sua
- Criada / Serva
- Huma Regateira / Una Regattera
- Huma Frialeira / Una Pescatoia, che vende pesce per la Cittá
- Hum andador de Confraria, q. pede esmola / Un Fratello de Congregazione che domanda la elemosina
- Huma Saloia vestida de Estio / Una Saloia vestita d’Estate
- O Meirinho da cidade com os seus Prettos em dia de bando, p.a alguma Festa / Un Officiale della Cittá o sia Banditore con i suoi due Servi
- Saloia a cavallo vestida de Inverno / Saloia a cavallo vestita d’Inverno
- Huma Colareja / Una venditrice di Frutti
- Huma Galinheira / Una venditrice di Galline
- Hum Mariola de Alfandega / Un Facchino della Dogana
A primeira faixa (figura 61), portanto, é ocupada por seis personagens militares, semelhantes aos que vimos no manuscrito da FBN. Ladeando as armas de Lisboa, vemos duas figuras ligadas ao poder judiciário: o Desembargador e o Porteiro.
Entre os militares, note-se a presença de um oficial negro com uniforme de regimento de Minas Gerais, além de um soldado designado como “de Malta”, certamente ligado à Ordem militar dos Cavaleiros de Malta.
Os demais oficiais são o capitão, sargento-mor, sargento e soldado de tropas auxiliares, responsáveis pela manutenção da ordem na cidade. Em conjunto, as figuras parecem evocar um sentido de autoridade.
Já no segmento seguinte da figura 61, todas as personagens são mulheres, sendo que a fidalga trajada para Semana Santa ocupa a posição central, abaixo das armas da cidade.
A seção é composta por outras três senhoras, uma proveniente do Porto, outra acompanhada de sua criada e outra de sua escrava. É de estranhar que se faça referência a uma escrava urbana neste contexto, já que a escravidão havia sido abolida no Reino e na Índia em 1761.
Além da parteira, situada ao lado da fidalga, as duas últimas figuras à direita da tela introduzem já o tema dos vendedores de rua, tratado também na seção seguinte.
No segmento inferior, vemos novamente em posição central um personagem que denota autoridade: o Meirinho, um administrador local e executor de sentenças.
Ele está acompanhado de “seus Prettos em dia de bando”, ou seja, tipos vestidos e paramentados para a declaração pública de um decreto ou de pena imposta a um transgressor.
Os demais personagens masculinos são o carregador de alfândega e o irmão que pede esmolas para a Confraria. Quatro figuras femininas completam a pintura: a “saloia”, ou camponesa, em trajes de verão e de inverno, além de duas vendedoras de rua.
No conjunto da pintura, contamos, portanto, seis militares, três figuras masculinas que representam autoridade, quatro vendedoras ambulantes, oito trajes femininos (fidalga, senhoras, a criada, a escrava, a parteira e a camponesa), além do irmão pedinte e do carregador de alfândega.
A segunda pintura (figura 62) também é dividida em três faixas horizontais, mas tem seus 22 personagens distribuídos de maneira menos simétrica e ordenada.
A correspondência com desenhos de Julião se observa aqui com mais clareza que na tela vista anteriormente. As legendas que identificam os personagens são:
A primeira faixa da figura 62, portanto, é ocupada por seis personagens militares, semelhantes aos que vimos no manuscrito da FBN. Ladeando as armas de Lisboa, vemos duas figuras ligadas ao poder judiciário: o Desembargador e o Porteiro25.
Entre os militares, note-se a presença de um oficial negro com uniforme de regimento de Minas Gerais, além de um soldado designado como “de Malta”, certamente ligado à Ordem militar dos Cavaleiros de Malta. Os demais oficiais são o capitão, sargento-mor, sargento e soldado de tropas auxiliares, responsáveis pela manutenção da ordem na cidade.
Em conjunto, as figuras parecem evocar um sentido de autoridade.
Já no segmento seguinte da figura 62, todas as personagens são mulheres, sendo que a fidalga trajada para Semana Santa ocupa a posição central, abaixo das armas da cidade. A seção é composta por outras três senhoras, uma proveniente do Porto, outra acompanhada de sua criada e outra de sua escrava.
É de estranhar que se faça referência a uma escrava urbana neste contexto, já que a escravidão havia sido abolida no Reino e na Índia em 1761. Além da parteira, situada ao lado da fidalga, as duas últimas figuras à direita da tela introduzem já o tema dos vendedores de rua, tratado também na seção seguinte.
No segmento inferior, vemos novamente em posição central um personagem que denota autoridade: o Meirinho, um administrador local e executor de sentenças.
Ele está acompanhado de “seus Prettos em dia de bando”, ou seja, tipos vestidos e paramentados para a declaração pública de um decreto ou de pena imposta a um transgressor. Os demais personagens masculinos são o carregador de alfândega e o irmão que pede esmolas para a Confraria.
Quatro figuras femininas completam a pintura: a “saloia”, ou camponesa, em trajes de verão e de inverno, além de duas vendedoras de rua. No conjunto da pintura, contamos, portanto, seis militares, três figuras masculinas que representam autoridade, quatro vendedoras ambulantes, oito trajes femininos (fidalga, senhoras, a criada, a escrava, a parteira e a camponesa), além do irmão pedinte e do carregador de alfândega.
A segunda pintura (figura 62) também é dividida em três faixas horizontais, mas tem seus 22 personagens distribuídos de maneira menos simétrica e ordenada. A correspondência com desenhos de Julião se observa aqui com mais clareza que na tela vista anteriormente.
As legendas que identificam os personagens são:
- o do Rio de Jan.o / Zerbinetto del Rio di Jan.o
- Huma a de Rio de Jan.o / Una Sig.a del Rio di Jan.o
- O modo com q vem o Preto do Mato a despachar na Alfandega de Angola p. se Venderem / Modo como viene un Negro dal Bosco […] nella Dogana di Angola per vendersi
- Mocamba da Baya / Serva della cittá della Baya
- Mocamba, q vem a ser molata, se tratta com gravidade / Serva, chiamata Mulatta che si tratta con Pulizia
- Mocamba do Rio de o / Serva del Rio di Jan.o
- Mocamba do Rio de o / Serva del Rio di Jan.o
- Mocamba do Rio de o / Serva del Rio di Jan.o
- Como andão nas Cadeyrinhas as Snr.as do Rio de Jan.o, as q. vão atrás são as Mocambas que as acompanhão sempre / Maniera che vanno nella Segette le Signore di Rio de Jan.o e quelle che vanno dietro sono le serve che l’accompagnano sempre
- Mocamba […] / Serva che va […] di Notte a […]
- Mocamba em desfarce / Serva trasvestita
- Mocamba do Rio de o / Serva del Rio di Jan.o
- Como costumão estar as Mulheres em suas Cazas no Rio de o / Come siano le donne in sue Caze nel Rio di Jan.o
- Pretta Mocamba do Rio de o / Serva di Rio di Jan.o
- Preto vende Agua no Rio de Jan.o / Negro che vende acqua nel Rio di Jan.o
- Mocamba di Angola / Serva di Angola
- Preta q. vende limonada no Rio de Jan.o / Negra che vende lemonata nel Rio di o
- O Modo de Carregarem os pretos no Rio de Janeiro / La Maniera di […] li Negri nel Rio di Janeiro
- O modo com andão os Pretos em Angola / La maniera che vanno li Negri in Angola
- Preta vende doces no Rio de Jan.o / Negra che vende dolci nel Rio di Jan.o
- Preta vende ovos no Rio de Jan.o / Negra che vende ovi nel Rio di Jan.o
- Mocamba preta de Baya / Serva Negra della Baya
Diferentemente da pintura anterior (figura 61), a parte central de cada segmento desta obra é ocupada por grupos de personagens:
- na faixa superior, vemos uma cena de mercado de escravos em Angola;
- na faixa central, uma cadeirinha sendo levada por dois escravos e seguida por criadas (que corresponde à estampa treze do álbum da FBN, ver Figura 27);
- na faixa inferior, um grupo de negros carregando um barril.
Apenas três personagens ocupam a faixa superior: um cavaleiro e uma senhora, ambos do Rio de Janeiro, e uma mucama da Bahia.
No segundo segmento, temos sete “mocambas” – vocabulário desconhecido em Bluteau, mas que possivelmente seja sinônimo de “mucama”, ou serva de casa –, todas brancas, sendo quatro delas provenientes do Rio de Janeiro. A última personagem deste segmento é uma mulher com os trajes que usa dentro de casa.
A faixa inferior é ocupada exclusivamente por personagens negros. Entre eles, vemos novamente três “mocambas”, sendo uma do Rio de Janeiro, uma da Bahia e uma de Angola, mais quatro vendedores de rua (água, limonada, doces e ovos), além de uma personagem que exibe o traje usado pelos nativos em Angola.
Diante disso, resta dedicar um pouco mais de atenção à questão da autoria das telas. Nesse sentido, há dois caminhos a considerar: aceitar ou não a atribuição feita a Carlos Julião.
Se consideramos que as obras tenham sido de fato executadas por ele, o primeiro dado a atentar é a datação.
Ainda que apenas uma delas seja datada, pode-se admitir que sejam ambas as telas de 1779, o que nos leva a concluir que elas foram forçosamente pintadas enquanto Julião estava a serviço da coroa portuguesa nas possessões ultramarinas.
Neste período, aliás, ele provavelmente estava no Brasil, já que a data coincide com a da prancha da Elevação e fachada. Deduz-se daí que todo o elenco de tipos provenientes do Reino já estivesse então organizado quando Julião deixou Portugal em 1774, o que implica que o hábito de desenhar visando a composição de “um álbum de curiosidades” é, portanto, anterior às viagens “às plagas distantes”, como queria Cunha (1960).
O que nos leva a outra importante conclusão: o interesse de Julião pelo registro de tipos humanos não foi despertado pelo que mais tarde se chamou de “exotismo” dos povos do ultramar português.
Ao contrário, ao que parece, trata-se de um interesse que antecede a viagem às Conquistas, e que talvez esteja informado por tradições visuais internacionais, tais como os livros de trajes, a literatura de viagem ilustrada e a cartografia.
Caberia investigar de que forma Julião apreende essas tradições.
Tendo em vista ainda a concordância com a atribuição das pinturas a Julião, há outros dois aspectos que precisam ser abordados.
O primeiro deles diz respeito à suposta habilidade de um militar para o ofício da pintura a óleo. Ora, sabemos, e teremos oportunidade de voltar a esse assunto adiante, que o exercício do desenho fazia parte da formação militar no século XVIII português, assim como a instrução no uso da aquarela, ambos instrumentos de grande utilidade para a atuação desses profissionais, em especial aqueles ligados diretamente à edificação.
O desenho e a aquarela eram de fácil manipulação em campo, ou seja, fora das condições controladas de trabalho em gabinete, e, ao mesmo tempo, eram de grande eficácia em “demonstrar”, “fazer ver” aquilo que era necessário comunicar aos superiores. Não à toa existem tratados que estabelecem uma normativa para o desenho militar no Setecentos português26.
Contudo, a prática da pintura a óleo exige uma preparação técnica diversa, que certamente não se adquire na Aula Militar.
Mas, supondo que ele possuísse essa habilidade, o que é possível, parece improvável que Julião tivesse pintado essas telas no Brasil por diletantismo, o que faz pressupor ter havido aí uma encomenda.
A presença, aliás, das legendas em italiano vem reforçar esta suposição. Na medida em que se pudesse apurar de modo conveniente a quem eram destinadas essas telas, certamente seriam trazidas à tona novas fontes de investigação, que ampliariam o entendimento da atuação de Carlos Julião no campo das artes visuais.
Se, ao contrário, admitirmos que Carlos Julião possa não ser o autor dessas obras, entra em cena, então, algum outro artista, que certamente tomou por base seus desenhos para a composição das telas em questão.
E aqui coloca-se um novo problema: se Julião retornou a Portugal apenas em julho de 1780, como veremos, as duas telas não podem ter sido pintadas simultaneamente.
A primeira pintura, que traz o símbolo de Lisboa, deve ter sido executada, portanto, em 1779 por artista anônimo, baseando-se em modelos de outro(s) desenhador(es) que não Julião.
Já a segunda pintura deve ter sido feita algum tempo depois, usando as aquarelas de Julião como principal referência.
Nesse caso, o pequeno intervalo temporal entre a primeira obra e a segunda explicaria talvez alguma diferença de composição entre elas, notadamente no que diz respeito à ordenação dos personagens, muito mais aglutinados na segunda pintura e melhor individualizados na primeira.
De todo modo, não há dúvida de que essas obras ocupam posição singular no contexto da arte portuguesa do século XVIII, não sendo usuais as representações de tipos populares locais em pintura antes da última década deste século. Tenreiro (2008:129) nota essa singularidade ao sugerir que as telas sejam renomeadas como “Castas de Portugal” e “Castas do Atlântico Sul”, em alusão, naturalmente, às pinturas de castas do Setecentos hispano-americano.
Ainda que tenhamos priorizado para este trabalho a relação de Julião com o universo do desenho militar e que nos seja desconhecida a existência de qualquer tradição de pintura de castas em Portugal, vale examinar se de alguma maneira é possível associar essas as duas tradições.
Como faz notar García Sáiz (1989), o surgimento do gênero das pinturas de castas na América Espanhola do século XVIII corresponde a um capítulo das práticas artísticas voltadas aos temas profanos na arte do período colonial.
Tendo como assunto principal a mestiçagem, os quadros de castas se ocupam da representação de conjuntos familiares compostos de um casal, cujos indivíduos procedem de grupos raciais distintos, e pelo menos uma criança derivada desta união e, portanto, mestiça.
Considerando-se todos os cruzamentos possíveis entre as três etnias principais – o branco, identificado como espanhol, o negro e o índio – e dessas com os tipos mestiços resultantes de cada mescla, chega-se a dezesseis diferentes “castas” que comporiam o total da população mexicana.
Assim, é habitual que as pinturas de castas se apresentem em séries de dezesseis quadros, sendo que, em alguns casos, o pintor escolhe representá-las num mesmo painel dividido em dezesseis compartimentos.
A constante presença de uma inscrição que explica a mescla racial figurada na pintura – como “de Cambujo e Índia produce Sambaigo” – parece ser prática emprestada das ciências naturais. Importante assinalar que alguns historiadores sugerem que os quadros de castas seriam destinados às paróquias e que as inscrições servissem como orientação aos párocos no momento registrar nascimentos, uma vez que o registro civil só foi estabelecido no México, por exemplo, em 185627. [Figuras 63 e 64]
Os quadros de castas mexicanos são ambientados como cenas domésticas, em que os personagens são registrados no interior de suas casas ou no desempenho de seus ofícios, constituindo um vasto repertório das atividades cotidianas no México colonial.
Logo, nessas pinturas, as castas se definem não apenas pela mistura racial de que se originavam, como também pelo modo de vestir e pelo ofício a que se dedicavam. A série de dezesseis telas explicita a condição e o lugar de cada casta, com o que se delineia um quadro geral da estrutura social da Nova Espanha setecentesca.
Ao pensar as séries de castas num possível paralelo com as pinturas atribuídas a Carlos Julião, uma primeira questão a considerar é o fato de que o gênero de pintura surgido no México se caracteriza como uma visão sobre a sociedade americana construída na América.
Sendo assim, aponta como fator distintivo dessa sociedade seu caráter mestiço e não se furta a um julgamento moral sobre a mescla de raças.
Nas telas da coleção pernambucana (como também nas demais obras atribuídas a Carlos Julião), ao contrário, o autor parece elaborar uma narrativa sobre a diversidade de povos e costumes que se reúnem sob uma mesma “coroa” (como literalmente ocorre na pintura dos tipos portugueses), diversidade esta que ele escolhe expressar por meio dos diferentes modos de vestir.
Não se trata, portanto, de um discurso sobre si mesmo, como no caso das castas, mas sobre o “outro”.
E, sendo assim, não podemos ignorar a dupla condição de Carlos Julião: um piemontês de nascimento a serviço do exército português.
Como militar, ele personifica o que Pratt (1992) chama de “olhos do império”, na medida em que observa e figura o alcance do domínio luso sobre diferentes povos e territórios.
Ao mesmo tempo, ele é também estrangeiro nesses domínios, possivelmente atraído pela multiplicidade de costumes com que se depara nesse universo. De todo modo, não parece haver julgamento moral em Julião, nem tampouco uma apreciação sobre a mescla de raças, embora a mestiçagem dos costumes seja percebida e representada por ele.
Entretanto, sendo ambas produções típicas do século XVIII, é inevitável que tanto as pinturas de castas quanto as obras de Carlos Julião estejam de alguma forma imbuídas de uma mentalidade ilustrada, que almeja classificar e ordenar o mundo.
Essa intenção subjacente torna visíveis organizações sociais por si hierárquicas.
Em Carlos Julião, inexiste a intenção de compor um quadro completo de todas as possibilidades de tipos sociais do mundo português do reino e ultramar e, dessa forma, dar a ver uma estrutura social.
Mas é possível sim entrever essa estrutura, que se insinua nos modos mais ou menos sofisticados de vestir, no fato de todos os negros carregarem algo nos ombros ou na cabeça e nenhum dos brancos carregar nada, ou nos brancos que supervisionam o trabalho dos negros nas minas, ou no fato de os indígenas estarem próximos dos recursos naturais.
Nas pinturas de castas, ao contrário, existe um programa compositivo a ser cumprido – as dezesseis possibilidades de cruzamento entre as três raças, representadas por meio de casais e um filho – que acaba por revelar o quanto as condições mais ou menos prósperas de vida na Nova Espanha do Setecentos eram diretamente proporcionais à quantidade de sangue branco trazido pelo tipo que representava aquele determinado extrato social.
Por outro lado, sendo as castas um gênero propriamente pictórico, é natural que esteja referenciado por convenções da pintura erudita28.
Assim, é possível perceber em muitas das telas que compõem as diversas séries modos de representação dos gestos e posturas corporais oriundas da pintura religiosa barroca, ou mesmo das cenas de gênero – os bodegones – do século XVIII espanhol.
Nas pinturas pernambucanas é bastante evidente que as figuras, pensadas sempre individualmente, estão referenciadas por outras figuras, provavelmente oriundas do desenho ou da gravura, mas não por modelos da pintura.
No caso das demais obras atribuídas a Julião, ainda que haja mais de um personagem representado na mesma prancha, eles raras vezes interagem ou compõem uma cena. Mantém-se em seus desenhos a impressão de uma visão fragmentada, que retira os personagens de seu contexto usual e os rearranja em outra ordem.
Também, vale assinalar que o desenho de Julião, em geral, apresenta uma certa “afetação” no modo de representar os gestos e posturas corporais, que de resto é típica da ilustração setecentesca.
Colabora para tanto a noção de “teatralidade” que, herdada do barroco, continua a informar a visualidade no que tange à representação da figura humana.
De todo modo, é preciso reconhecer que as telas pernambucanas apresentam uma configuração que se assemelha a certas pinturas de castas, especificamente àquelas em que os dezesseis casais estão reunidos no mesmo quadro.
Como podemos notar pela Figura 65, nessa tipologia as castas são organizadas em compartimentos isolados e, assim como as telas da coleção Brennand, trazem legendas para identificação dos personagens.
O exame particularizado do conjunto de obras de autoria de Carlos Julião ou a ele atribuídas teve como propósito, em primeiro lugar, circunscrever o corpus em torno do qual esse trabalho se desenvolve. Ao mesmo tempo, procuramos apurar o que já se tem dito sobre elas, avaliar o “estado da questão”, para, a partir disso, construir hipóteses a respeito de enunciados e destinatários.
Tentou-se também averiguar em que medida esses trabalhos implicam na familiaridade com repertórios de imagens já sedimentados.
A primeira questão que se apresenta quando se acerca esse corpus é a falta de clareza com relação à autoria.
Apenas uma das obras é assinada pelo militar Julião, sendo as demais atribuídas a ele por semelhança com esta primeira. Ora, se consideramos que o prospecto e os fortes representados na Elevação e fachada são cópias de outros desenhos, o que nos garante que as figuras também não sejam?
Da mesma forma, não é difícil verificar que existe uma certa desigualdade no tratamento das figuras da Configuração da entrada da barra… Entretanto, como ponto de partida, admitimos esse conjunto como um corpus único, que se apresenta sob um mesmo espectro de questões.
De resto, os problemas de autoria são bastante recorrentes no contexto da iconografia luso-brasileira do Setecentos. Teremos ocasião de voltar a esse assunto oportunamente.
Entre as hipóteses que surgiram ao longo deste capítulo, destacamos aquelas referentes às duas pranchas de Carlos Julião conservadas no GEAEM.
Segundo a leitura que Alpers (1999) propõe do mapa do Brasil holandês de Marcgraf como uma “cartografia histórica”, sugerimos que a Elevação e fachada seja tomada como uma “descrição histórica” de Salvador, como também que a Configuração da entrada da barra… seja relacionada às tentativas de implantação de leis anti-racistas na Índia portuguesa.
Naturalmente, essa leitura implica que o destinatário dessas obras seja o próprio estado português, o que é perfeitamente condizente com a condição de Julião ser um oficial do exército. O fato de que elas façam atualmente parte do acervo de uma instituição militar só vem reforçar a probabilidade de que sua origem esteja ligada a alguma requisição superior. Esses desenhos fazem ver aos olhos metropolitanos o que seria, de outro modo, invisível.
O álbum de “figurinhas” da FBN, por sua vez, parece ter outro destinatário, que, conforme sugerimos, seria o brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, personagem central da composição alegórica que abre o volume. Isso implica, ainda, que o álbum tenha sido composto para ser presenteado a partir de um repertório mais vasto de “figurinhas”.
Cabe destacar que algumas cenas de caráter mais anedótico, como são as Figuras 16 e Figuras 34, destoam um pouco do conjunto, introduzindo um ritmo narrativo diverso das demais.
Quanto às pinturas pertencentes ao Instituto Ricardo Brennand, consideramos improvável que a autoria seja de Julião.
Não há dúvida de que o pintor se reporta aos desenhos de Julião para a composição, o que é procedimento perfeitamente usual no período em questão, mas isso não é evidência suficiente para que se assuma ser ele o autor dessas obras.
Por outro lado, discordamos da opinião de Tenreiro quanto a interpretá-las segundo o modelo das pinturas de castas hispano-americanas. Em nossa opinião, Julião não se ocupa da mestiçagem, mas sim da diversidade, que ele representa por meio dos modos de vestir.
De toda forma, é possível entrever muitas tradições e convenções da representação neste conjunto de trabalhos. Isto faz de Julião não apenas um observador atento, como também um observador informado.
Ou seja, o que se manifesta nessas obras não advém apenas da percepção, mas também de algum conhecimento prévio dos assuntos retratados.
A seguir, vamos percorrer a trajetória biográfica de Julião, ao menos até onde nos foi possível reconstituí-la. Vejamos o que pode ser revelado sobre sua personalidade artística a partir daí.
Resumo da Biografia de Carlos Julião
1. Formação e Origem Italiana
Carlos Julião nasceu provavelmente na Itália, em meados do século XVIII. Há poucas informações sobre sua juventude, mas sabe-se que adquiriu uma sólida formação em engenharia militar e artes visuais, que o habilitou para o serviço técnico e artístico.
Essa formação foi essencial para sua posterior atuação no contexto do Império Português.
2. Serviço Militar e Atuação em Portugal
Trabalhou como engenheiro militar e foi designado para atuar em diferentes funções administrativas e técnicas, sobretudo relacionadas às colônias portuguesas.
3. Viagem à Índia e Passagem pelo Brasil
Uma fase marcante de sua carreira foi sua designação para a Índia, onde trabalhou no contexto das possessões portuguesas no subcontinente indiano.
Durante sua permanência na Índia, Julião teve contato direto com a diversidade cultural e social daquela região, o que influenciou a riqueza etnográfica de suas obras.
Na viagem de retorno para Portugal, Julião passou pelo Brasil, onde teve a oportunidade de observar e registrar elementos da sociedade colonial brasileira.
Embora sua estadia no Brasil tenha sido breve, essa experiência contribuiu para aprofundar sua compreensão sobre as dinâmicas sociais, culturais e econômicas da colônia. Muitos de seus desenhos e aquarelas refletem essa vivência direta e demonstram sua habilidade em captar aspectos do cotidiano das populações locais.
4. Produção Artística e Iconografia Colonial
A obra de Carlos Julião é uma das mais importantes representações visuais do período colonial português. Ele produziu desenhos e aquarelas que retratam a diversidade étnica, social e cultural das colônias portuguesas, incluindo o Brasil, Angola, Moçambique, Goa e outras regiões.
Sua produção inclui o famoso álbum “Riscos Iluminados de Figurinos de Várias Nações”, que reúne ilustrações detalhadas de tipos sociais, práticas culturais e indumentárias típicas do vasto Império Português.
Embora parte de sua obra tenha se baseado em relatos e documentos, a passagem pelo Brasil e a permanência na Índia conferem autenticidade e riqueza descritiva a muitos de seus trabalhos, tornando-os fontes históricas inestimáveis.
5. Reconhecimento e Legado
Carlos Julião faleceu no final do século XVIII, deixando um importante legado iconográfico.
Seu trabalho, inicialmente produzido para fins administrativos e documentais, é hoje reconhecido como uma fonte histórica essencial sobre a vida nas colônias portuguesas.
Ele contribuiu para a construção de uma visão abrangente e detalhada do cotidiano colonial, desde aspectos da escravidão e do trabalho forçado até manifestações culturais das populações locais.
A obra de Julião está preservada em arquivos e coleções públicas, como na Biblioteca Nacional de Portugal.
Seus desenhos continuam sendo estudados por historiadores, antropólogos e outros especialistas, que o consideram uma figura central para a compreensão do Império Português no século XVIII.
Biografia e Carreira Militar de Carlos Julião
Carlos Julião é mais um entre os inúmeros funcionários que a Coroa portuguesa colocou “on the move” – para usar a expressão de Russel-Wood (1998) –, a circular pelo espaço colonial espalhado em quatro continentes. Definitivamente, portanto, não é personagem citado em dicionários ou compilações de biografias de homens célebres.
Os dados biográficos que podem ser comprovados por documentação a seu respeito são ainda escassos e, para uma reconstituição cronológica de sua trajetória, é necessário recorrer a fontes bastante dispersas.
O trabalho pioneiro no sentido de esboçar uma biografia de Julião foi publicado por Lygia Cunha em 1960, como introdução à edição facsimilar do álbum Riscos iluminados de figurinhos de brancos e negros…, pertencente à FBN, Rio de Janeiro (Cunha 1960).
Silvia Hunold Lara (2002 e 2007) levou adiante em grande parte a biografia já traçada por Cunha, acrescentando-lhe algumas hipóteses, como, por exemplo, aquelas relativas ao local de morte do artista.
Passo fundamental para o aprofundamento da questão foi dado por Maria Manuela Tenreiro (2007 e 2008), que, a partir de exame de documentação nos arquivos portugueses, trouxe à tona o manuscrito da Biblioteca Nacional de Portugal (de que falaremos adiante), assim como várias outras informações de relevo.
Mais uma fonte a destacar nesse quesito é o breve texto de Carlo Burdet (1986), o primeiro a fazer notar a proximidade entre Julião e o coronel Carlo Antonio Napione (1756-1814) a partir de 1801, quando o metalurgista e mineralogista turinense passou a servir o exército português como inspetor do Arsenal Real do Exército.
Tanto Cunha, quanto Lara e Tenreiro consideram que Julião desempenhasse funções de engenheiro dentro dos quadros do exército português, conforme se pode deduzir das afirmações: “dos dados que nos chegaram às mãos não consta a data que obteve o exercício de engenheiro” (Cunha 1960), ou “an engineer by training”29 (Lara 2002) ou ainda “Julião who served in the Portuguese colonial army as an engineer” (Tenreiro 2007).
Sendo assim, no intuito de compreender adequadamente a gênese da obra iconográfica de Carlos Julião, torna-se prioritário avaliar sua presença junto ao contexto de atuação dos engenheiros militares no Setecentos português.
É conhecida a relevância do papel que esses profissionais exerceram durante o século XVIII na América Portuguesa em áreas tão abrangentes quanto o levantamento cartográfico e a delimitação de fronteiras, a construção civil e o desenho urbano, entre outros.
Em vista disso, é por vezes difícil circunscrever com precisão seu leque de atividades, como lembra Rafael Moreira ao chamar o engenheiro do século XVIII de “generalista, homem dos mil ofícios não especificados” (apud Faria 2001:72).
De fato, a expectativa em torno da atuação desses profissionais pragmáticos era de que fossem capazes de viabilizar a ocupação e defesa dos territórios submetidos à coroa portuguesa, encontrando soluções e propondo intervenções a partir das características e variáveis apresentadas pelo próprio sítio, e não apenas tendo em conta preceitos teóricos.
Como fundamento do exercício de todas as suas funções estava o conhecimento da matemática e do desenho.
Beatriz Bueno (2003) faz notar a confluência de sentido entre as palavras “desenho” e “desígnio” naquele contexto. A noção de “desenho” entre os portugueses está então imbuída de forte caráter instrumental, já que identificada com o raciocínio, o “exercício mental que precedia a viabilização de qualquer intento” (Bueno 2004a:153).
Outro aspecto importante a destacar é a utilização do desenho durante o século XVIII lusitano com o propósito de “demonstrar”, dar a conhecer, fazer ver aos gestores metropolitanos o processo de efetiva ocupação e controle dos territórios das Conquistas.
Dentro da lógica colonial, os desenhos produzidos pelos engenheiros militares no ultramar português foram mediadores da ação política de dominação territorial empreendida pela metrópole.
É fundamental que se estabeleça essa diferenciação entre o caráter “utilitário” do desenho praticado em Portugal daquele mais especulativo do desenho engendrado pela cultura clássica, em que este se converte em modo de apreensão da estrutura visível das coisas, tornando-se meio de conhecimento do mundo. Diante da necessidade de veiculação de informações objetivas, era natural que a prática do desenho entre os engenheiros militares fosse, em grande medida, padronizada pelo uso de convenções de representação. De fato, é principalmente nas publicações do engenheiro-mor do reino Manoel de Azevedo Fortes (1722 e 1729) que se encontram compilados os métodos, instrumentos e a codificação da representação gráfica utilizada no Setecentos português (Bueno 2004a:176).
Em vista dessas considerações, no presente capítulo, as informações sobre a vida de Julião veiculadas pelos autores citados anteriormente serão complementadas e confrontadas com a documentação encontrada durante pesquisa realizada em arquivos portugueses no curso deste trabalho, nomeadamente no Arquivo Histórico Militar (AHM), Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e Biblioteca Nacional de Portugal (BNP).
As informações auferidas da documentação serão contrapostas a outras de ordem histórica, que visam trazer elementos que possam esclarecer se, e de que forma, Carlos Julião esteve vinculado à prática da engenharia militar ou aos estabelecimentos de ensino do desenho no contexto do exército português, quais sejam: as Aulas dos Regimentos de Artilharia (instituídas por ocasião da reforma do exército de 1762), a Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho (criada em 1790), a Aula de Desenho e Lavra de Metais da Fundição do Arsenal do Exército (em funcionamento desde meados do século XVIII) ou a Casa do Risco do Real Jardim Botânico da Ajuda (criada em 1780)30. Vejamos até que ponto foi possível remontar esse quebra-cabeças.
1. Origem e Formação
Conforme está declarado em vários dos documentos consultados, Julião nasceu na cidade de Turim, então capital do Reino da Sardegna31, em 1740.
Uma das questões que emerge a partir do reconhecimento de sua nacionalidade piemontesa é o próprio sobrenome “Julião”. Burdet (1986) chama atenção para esse fato, afirmando a dificuldade de deduzir, a partir da versão traduzida para o português do sobrenome, o nome italiano original é destacada por Burdet (1986).
Segundo o autor, são muito comuns na região os sobrenomes Giuliano ou Giuliani – que poderiam ser vertidos para Julião em português –, até mesmo escritos com a inicial “J”. Burdet não descarta, ainda, a hipótese de Julião ter nascido no Piemonte no âmbito, porém, de uma família de origem portuguesa, possibilidade que Tenreiro também considera (2008:27).
A questão, contudo, só poderia ser devidamente esclarecida por meio de uma pesquisa mais atenta em arquivos turinenses.
O fato é que, em toda a documentação consultada sobre Carlos Julião em Portugal, seu sobrenome aparece sempre na forma portuguesa, com uma única exceção: o Almanaque de Lisboa de 1807.
Nesta publicação, o nome de Julião é mencionado duas vezes: a primeira à página 120, onde se lê “Carlos Juliani, no Arsenal Real do Exército, Campo de Santa Clara”; a segunda à página 355, em que é citado como “o coronel Carlos Juliani, junto ao Parque do Campo de Santa Clara”.
É provavelmente baseada no Almanaque que Silvia Lara adota em seus escritos a grafia do sobrenome Juliani (2007).
O próprio Julião, no entanto, sempre utiliza a forma portuguesa do nome, seja em sua correspondência, seja nos trabalhos de sua autoria, assinando “Carlos Julião” a prancha Elevação e fachada… e “Carlos Valentim Julião” o manuscrito da BNP.
Os dados relativos à formação de Carlos Julião são bastante imprecisos, assim como não são claros os motivos de sua transferência para Portugal. O documento que pode nos dar algumas pistas para o esclarecimento dessas questões fundamentais está conservado no AHU, e é datado de fevereiro de 1781.
Trata-se de um Aviso do secretário dos Negócios Estrangeiros, Aires de Sá e Melo (1715-1786), ao secretário da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro (1716-1795), em que se determina que os oficiais de artilharia que voltavam dos serviços no Brasil e na Índia fossem agregados aos regimentos de artilharia da Corte, nos postos que estivessem vagos.
Anexo a este Aviso, há um documento redigido de próprio punho por Julião, em que o então primeiro-tenente de artilharia afirma ser “natural da Corte de Turim de donde passou a esta de Lisboa, só para adequerir a gloria de servir a V.a Mag.de Fidelíssima”33.
Vale ainda destacar a afirmação contida em outro documento anexo a um processo de 1780, onde se lê que “Carlos Julião que disserão ser filho de João Baptista, natural de Turim, o qual declarou ter vindo para este Reyno no anno de mil setecentos e sessenta e trez”.
A partir de ambos os trechos expostos, é possível deduzir que Carlos Julião transferiu-se para Portugal aos 23 anos, no que parece ter sido uma opção profissional de colocar-se a serviço da coroa portuguesa.
A chegada e imediato início de sua carreira no exército luso num posto de oficial (como teremos oportunidade de confirmar adiante), nos colocam diante de outra questão fundamental para entendimento da biografia de Julião: a de que sua formação teria se dado ainda na Itália35.
O mesmo documento de fevereiro de 1781 – que quase pode ser considerado um curriculum vitae – nos apresenta outra importante pista sobre os anos formativos de Julião, especialmente no trecho em que o primeiro-tenente afirma ser “constante o exercício e aplicação que o Sup.te teve em tirar moldes, fazer debxos, e riscos na reggia academia de Turim”. Tudo indica, portanto, que Julião chegou a Portugal depois de cumprida sua formação militar, que aconteceu em sua cidade natal, possivelmente na Reale Accademia di Savoia (ou di Torino), fundada em 1679 pela regente Giovanna Battista (1644-1724), viúva do duque Carlo Emmanuele II (1634-1675)36.
O livro Turin, 1564-1680 de Martha Pollak (1991) é especialmente relevante para a compreensão da cultura de forte cunho militar que se desenvolve nesta cidade, enquanto local escolhido pela Casa de Savoia para instalar a sua capital a partir de 1560.
Segundo a autora, durante os séculos XVI e XVII, Turim – que até o Quinhentos ainda mantinha sua forma primitiva de castrum romano –, terá seu desenho urbano e sua fisionomia arquitetônica sucessivamente transformados para fazer dela uma cidade-capital, expressão do poder da corte ducal reinante.
E a preocupação central desta corte, conforme Pollak, não era outra senão a manutenção da recém-adquirida independência do seu Estado, tornada possível por meio de uma série de acordos diplomáticos estabelecidos com outras casas reais europeias.
Essa certa fragilidade política era ainda agravada pela situação geográfica do ducado, localizado bem aos pés dos Alpes.
Essa localização fazia com que o Piemonte fosse considerado pelos demais estados italianos como um importante bastião de defesa, já que seria o primeiro alvo de possíveis invasores da península itálica.
Por outro lado, situava-se entre os territórios controlados pelas maiores potências militares do período, França e Espanha (então ocupante da Lombardia). E, em sucessivos episódios, o Piemonte foi invadido alternadamente por uma e outra.
De acordo com a tese de Pollak (1991:18), esses fatores favoreceram o desenvolvimento entre os Savoia de uma condição de “constante vigilância”, determinante para a constituição de uma verdadeira “cultura militar” no ambiente turinense.
Cultura essa que estaria expressa não somente na aparência de seus edifícios e fortificações, como também na elaborada simbologia evocada nas festas e cerimoniais promovidos pela corte ducal.
A constituição da “the richest princely collection of military books in Italy”37 (Pollak, 1991:156), composta dos principais escritos dos séculos XVI e XVII não apenas de autores italianos, mas também de franceses e flamengos, e ainda de representativas coleções de mapas, tratados e manuscritos são também aspectos significativos do interesse dos duques de Savoia pelas questões militares.
Esse ambiente tão moldado por preocupações da ordem da defesa e fortificação das praças, do aperfeiçoamento das armas de artilharia, da ordenação do espaço urbano para circulação de tropas e equipamentos de guerra, supostamente teria garantido a Julião uma formação militar sofisticada, que lhe permitiria notável versatilidade em diversas área de atuação, como teremos oportunidade de constatar adiante.
2. Início de Carreira no Exército
Também não pode passar despercebido o fato de Julião ter se transferido para Portugal num momento de profunda reestruturação do exército luso, fato esse que merece algumas considerações. A segunda metade do século XVIII corresponde a um período de modernização e organização do exército enquanto instituição em Portugal, ao mesmo tempo em que revela a emergência do militar como categoria social naquele país.
É Boxer quem nos lembra da total impopularidade e falta de prestígio que o serviço militar tinha até então entre os portugueses, notoriamente pelo fato de a Coroa ser “mau patrão”, pagando “mal, tarde, ou nunca” (2002:310-325).
Outro fator que colaborava para a má reputação do serviço militar era o sistema de recrutamento empreendido pelas “levas”, que percorriam o interior do país praticamente arrastando à força os jovens aptos a servir no exército. Segundo afirma Marques (1981), até o período pombalino, subsistiam ainda práticas no âmbito do exército que faziam com que sua organização reproduzisse uma estratificação própria da sociedade portuguesa.
Grosso modo, a alta nobreza, por tradição e hereditariedade, ocupava os postos de comando, enquanto o restante da oficialidade provinha de uma pequena aristocracia provincial, que podia contar com o favor de algum “grande”. Os quadros se completavam com aventureiros e marginais que se ofereciam como voluntários, ou soldados que haviam podido subir um pouco na hierarquia aproveitando o sucesso de alguma campanha.
A inoperância do exército já tinha sido sentida em parte por ocasião do terremoto que assolou Lisboa em novembro de 1755 (Marques 1981:30), quando os oficiais não foram capazes de conter o caos que rapidamente se espalhou pela cidade.
Mas o processo que desencadeou a necessária profissionalização das forças militares em Portugal foi a Guerra do Pacto de Família, ou Guerra Fantástica, como ficou conhecida a parcela da Guerra dos Sete Anos (1756-1763) que se desenrolou em território luso entre maio e novembro de 1762.
O conflito originou-se da recusa de d. José I em aderir ao pacto de família dos Bourbons da França, Espanha, Nápoles e Parma contra a Inglaterra e Prússia. Uma vez desobedecido o ultimato para que Portugal fechasse seus portos aos navios ingleses, o país foi invadido por tropas franco-espanholas através da fronteira de Trás-os-Montes, em 5 de maio de 1762.
Por essa época, o exército português via-se já há um bom tempo reduzido à metade de seus efetivos, “todos mal armados e pior disciplinados” (Cordeiro 1895:191). Em 1761, não se pagava a tropa há um ano e meio, e os soldados recorriam frequentemente à mendicância e à violência (Marques 1981:31).
Diante do número alarmante de deserções, algumas medidas emergenciais foram tomadas com sucesso pela administração do então conde de Oeiras no sentido de aumentar os efetivos, como, por exemplo, o pagamento de soldos atrasados. Até setembro de 1762, o exército saltará de dezoito para sessenta mil homens.
No entanto, como ocorrera com frequência no passado, diante do conflito, foi necessário recorrer ainda à ajuda estrangeira para completar os quadros militares e armá-los adequadamente para o confronto com os invasores.
O rei George III da Inglaterra enviou a Portugal um efetivo de oito mil homens, acompanhados de vários oficiais superiores, que seriam alocados em postos de comando do exército português.
Também recomendado pelos ingleses, chega ao país o personagem que assumiria um papel de protagonista no processo de modernização das forças militares em Portugal, o conde de Schaumburg-Lippe (1724-1777)38, que d. José I fará marechal-general e comandante-em-chefe do exército luso-britânico em 10 de julho de 1762.
Como consequência das mortes do irmão e do pai, é chamado a assumir, aos 24 anos, o governo do condado de sua família. Quando eclode a Guerra dos Sete Anos, reúne suas tropas ao exército de Hannover, para combater ao lado dos prussianos.
Distingue-se na condução de diversas operações de batalha, o que lhe vale a nomeação de comandante da artilharia dos exércitos aliados. Nessa condição, é convidado a ir a Portugal liderar o exército luso-britânico contra os invasores franceses e espanhóis.
Ciente da inferioridade de suas tropas, Lippe limita sua ação a uma guerra de posições, impedindo avanços do exército inimigo. A guerra transcorre sem que nenhuma batalha significativa seja travada, e logo a 1 de dezembro assina-se o armistício. Em fevereiro de 1763, o tratado de paz é ratificado em Paris.
Apesar do fim das hostilidades, era patente que Portugal não tinha capacidade de defender a integridade do seu território sem recorrer à ajuda estrangeira, e em especial à da Inglaterra.
Conforme afirma Marques, no âmbito da lógica do projeto pombalino de governo, o processo de modernização do Estado teria necessariamente de considerar a reestruturação do seu exército. “O exército devia passar a corresponder à natureza despótica do poder, (…) ser, enfim, o garante da autoridade do Estado impondo-se sobre a sociedade global” (Marques 1981:48).
É justamente nesse contexto que o conde de Lippe é convidado pelo ministro Carvalho e Melo a permanecer em Portugal e proceder a todas as reformas necessárias para dotar o país de um exército em condições de enfrentar potenciais inimigos.
Com esse propósito, Lippe prolongou sua estadia em Portugal até setembro de 1764, retornando posteriormente para outra temporada entre setembro de 1767 e março de 1768, quando voltou em definitivo para a Alemanha.
No entanto, mesmo à distância, o conde continuou a ser uma figura de referência para os portugueses: frequentemente enviava instruções e conselhos sobre questões militares aos oficiais, muitos dos quais mantinham correspondência assídua com ele, elaborava documentos, e era sempre o primeiro nome a ser lembrado, em especial por d. José I, quando Portugal se encontrava diante de qualquer ameaça mais efetiva.
As principais medidas adotadas por Lippe diziam respeito, em primeiro lugar, à organização mesma do exército. No que se refere à Artilharia – que nos interessa particularmente, já que será a arma onde trabalhará Carlos Julião –, foram organizados quatro regimentos: o de Lisboa (ou da Corte), o de Lagos (ou do Algarve), o de Extremoz (ou do Alentejo) e o do Porto (ou do Norte).
Cada um desses regimentos era formado por doze companhias, sendo uma de bombeiros (ou bombardeiros), uma de mineiros, uma de artífices e nove de artilheiros39 (Cordeiro 1895).
Com relação à disciplina e à instrução das tropas, grande preocupação de Lippe, o conde apresentou, ainda no início de 1763, o Regulamento para cavalaria e infantaria que haveria de continuar sendo referencial para o exército luso até o século XIX.
Lippe também dotou as forças militares portuguesas de seu primeiro plano de uniformes, incluídos aí exército e marinha, datado do ano de 1764, projeto este extensível às possessões ultramarinas.
Só a partir deste ano, passou-se a fixar com rigor o aspecto e a maneira de portar os uniformes.
O corte seria o mesmo para todas as armas e as unidades se diferenciariam pelas formas e cores das golas, lapelas, bandas, vistas, galões, botões, etc.
Somente em 1806 é que se estabelece em Portugal o costume de vestir todo o exército com uniformes iguais (Rodrigues 1999:13).
Outras iniciativas importantes do conde incluíam o fomento ao ensino e à prática da artilharia e da engenharia militar, a definição das leituras e planos de estudos para cada arma, indicação dos livros militares estrangeiros que deveriam ser traduzidos para o português, assim como as obras mais adequadas aos “exercícios de meditação militar” (Marques 1981:50).
De acordo com Marques, as reformas empreendidas por Lippe garantiram a Portugal a constituição de um exército moderno, tanto do ponto de vista da sua estrutura, quando dos valores militaristas que passaram a orientar a conduta das tropas, como a obediência, o respeito à hierarquia e o sentimento de honra com relação ao serviço à pátria.
Em seu conjunto, induziram os oficiais militares a um novo tipo de relação hierárquica, que deixava de ser social e tornava-se funcional.
As atribuições de graduações não diziam mais respeito à concessão de privilégios, mas passavam a depender de critérios profissionais como antiguidade e correto cumprimento das obrigações funcionais.
O que ocorreu, como é claro supor, não sem resistência por parte daqueles ainda ligados aos antigos métodos.
É possível que Julião estivesse ciente das reformas empreendidas pelo conde de Lippe nas forças militares lusas e que isso tenha lhe parecido suficientemente tentador para mudar-se para Portugal? É, sem dúvida, uma hipótese. Já que a presença de estrangeiros no exército português era tão significativa, talvez o jovem vislumbrasse aí uma chance de obter maior destaque profissional do que poderia conseguir servindo em seu próprio país. No entanto, esta é apenas uma hipótese, impossível de ser averiguada no estágio atual das pesquisas.
De toda forma, Lisboa ainda se reconstruía após a destruição provocada pelo terremoto de 1755, e muitos estrangeiros se dirigiram para lá em busca de oportunidades profissionais.
O fato é que a carreira de Julião no exército português inicia-se bem em meio a esse processo, em outubro de 1763, quando recebe patente de segundo-tenente40 do corpo de bombeiros do Regimento de Artilharia de Lagos, que havia poucos meses tinha sido reorganizado para substituir o antigo Regimento de Artilharia e Marinha do Reino do Algarve42.
O comando do novo regimento estava nas mãos do coronel Cristiano Frederico de Weinholtz (1732-1789), filho de Frederico Jacob de Weinholtz (1700-1752), militar de origem alemã que havia alcançado bastante prestígio a serviço da coroa portuguesa.
A primeira promoção de Julião viria rápido, apenas alguns meses depois, embora a patente só viesse a ser confirmada em 1768. Essa é, aliás, a primeira de algumas confusões que envolvem as patentes do nosso oficial.
Em documento não datado, mas posterior a 1765, Carlos Julião é citado como primeiro-tenente do corpo de bombeiros do Regimento de Artilharia de Lagos.
No entanto, afirma-se que “não tem Patente deste Posto em que foi nomeado em o 1º de fevereiro de 1764 pelo Tenente Coronel Diogo Ferrier aprovada pelo Marechal General”. E ainda “cobrava o Soldo dobrado, que agora não cobra por não ter título, nem ordem alguma que fosse passada ao Thesoureiro Geral para este pagamento”44.
De fato, a falta de patente só seria corrigida em 24 de março de 1768, quando esta seria expedida em “concideração aos merecimentos e mais partes que concorrem na pessoa de Carlos Julião (…) e aos serviços que me tem feito e a se achar sem a patente que deve ter na forma das Minhas Reaes Ordens”. Vale ainda assinalar que, desde junho de 1764, o regimento de Lagos, onde estava alocado Carlos Julião, havia sido transferido para o Quartel da Feitoria em Oeiras, onde o nosso oficial passaria a residir.
Visto que sua próxima promoção só aconteceria treze anos depois da segunda carta-patente, cabe uma pausa para investigar quais teriam sido suas atividades nesse período.
O Processo Individual de Julião, conservado no AHM, menciona alguns “desembarques” de que ele teria tomado parte, entre os quais seria “de muita attenção a Expedição do Mazagão”, ocasião em que “foi salvar a Habitantes do ditto Prezidio debaixo do fogo do Inimigo, e com risco evidente da sua vida”.
Novamente será necessário recorrer ao documento do AHU já citado para esclarecer melhor a natureza desta expedição. Naquele documento, Julião afirma ter “feito huma guarda costa com o Cap.m de mar e Guerra Bernardo Remires de hum anno cuja campanha se concluio com o **transporte de moradores da praça de Marzagão [sic]”.
Mazagão havia sido fundada pelos portugueses em 1513 como entreposto comercial na costa do atual Marrocos, ainda no contexto da fase da expansão marítima lusitana na direção do Magrebe. Sua fortaleza, construída a partir de 1541 segundo projeto do italiano Benedetto da Ravenna, era das mais inexpugnáveis edificadas pelos portugueses, o que provavelmente explica o fato de Mazagão ter sido o último baluarte luso na costa ocidental da África a cair, já na segunda metade do século XVIII.
Nessa altura, a cidade, nas palavras de António Dias Farinha, “definhava numa luta intermitente com os mouros”, até que, em 1769, não resistiu ao cerco do sultão Sidi Mohamede ben Abdala.
Diante da já pouca importância da cidade no sistema colonial português, decidiu-se pela sua evacuação, para o que foi negociada uma trégua.
Ainda segundo Farinha, foi enviada a Mazagão “uma forte armada encarregada de trazer todos os moradores, a guarnição militar e todos os bens que fosse possível embarcar”, após o que a fortaleza foi minada. Seus habitantes e guarnições foram transportados primeiramente para Lisboa e, pouco depois, para a recém-fundada cidade de Nova Mazagão, em plena Amazônia brasileira, atual estado do Amapá.
Se Julião atuou, como afirma, no transporte dos moradores de Mazagão, é certo que o navio em que servia como guarda-costas tenha feito parte da “forte armada” reunida para a evacuação da cidade ordenada por D. José I em 1769.
Como consequência dessa expedição e da “contajoza socciedade” a que foi submetido, o oficial afirma ter adquirido uma “rigoroza maligna com a qual dezembarcou para sua caza sem esperanças de vida, em cuja dilatada e perigoza doença gastou moito do seo patrimônio”49.
Há ainda outro trecho no mencionado documento de 1781 do AHU que nos será bastante útil, não só para trazer à tona atividades em que Julião esteve envolvido e que não são mencionadas no seu Processo Individual, como também para evidenciar a versatilidade e o alcance de sua formação militar. Nele, o oficial afirma que seu treinamento na academia turinense deu motivo ao Superintendente a fazer o modelo da Fortaleza do Bugio, que teve a honra de oferecer ao Sereníssimo Príncipe; e de ser encarregado de fazer o modelo em pequeno da Estátua Eqüestre, por Francisco Xavier de Mendonça, que, por causa de sua quase repentina morte, não se chegou a efetuar em grande escala.
Uma peça de artilharia com seus reparos em proporção, fundida por sua própria mão, foi apresentada ao Marechal Conde de Lippe na Aula de São Julião da Barra. E o retrato em pedra do mesmo Conde de Lippe, que o Superintendente apresentou nas mãos do Senhor Rei D. José, de gloriosa memória.
Diante de todos esses dados, será conveniente analisarmos as tarefas uma a uma. Comecemos pela “fortaleza do Bugio”.
O modelo a que Julião se refere é provavelmente uma maquete da Fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca, ou do Bugio, que está situada no meio do estuário do Tejo, em posição fronteiriça ao Forte de São Julião da Barra, na altura de Oeiras.
Foi construída durante o reinado de D. João IV (1604-1656, rei a partir de 1640), com projeto inspirado no Castel Sant’Angelo de Roma, que, por sua vez, acabou por servir de modelo para a construção do Forte de São Marcelo, ou Forte do Mar, em Salvador.
Sabemos que o terremoto de 1755 destruiu o farol do Bugio, cuja reconstrução foi ordenada pelo secretário Sebastião José de Carvalho e Melo três anos depois. Julião foi possivelmente encarregado de executar uma maquete por ocasião da reedificação do farol, que só seria concluída em 1775.
Mas de que se trata o “modelo em pequeno da Estátua Eqüestre”? Segundo Julião, o modelo desta estátua lhe teria sido encomendado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), irmão do futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, que foi governador-geral da Capitania do Grão-Pará e Maranhão desde sua criação em 1751 até 1759.
Isabel Mendonça (2003:6) nos lembra que, por ocasião do retorno de Mendonça Furtado para o Reino, os vereadores de Belém do Pará solicitaram-lhe que localizasse em Portugal um artista habilitado a realizar uma estátua de D. José I para ser colocada na praça fronteiriça ao novo Palácio dos Governadores, edifício que começava a ser construído segundo projeto do arquiteto bolonhês Antonio José Landi (1713-1791).
As obras, no entanto, não ocorreram na velocidade planejada, e o Palácio só seria terminado em 1772. Pouco antes disso, em 1769, os vereadores da cidade voltaram a dirigir-se a Mendonça Furtado, reiterando o pedido de auxílio para a confecção de uma estátua do rei para Belém.
Na ocasião, foi enviado a Portugal inclusive um projeto de pedestal para a escultura, também com desenho de Landi, que recebeu parecer desfavorável de Reinaldo Manuel dos Santos (1731-1791), arquiteto das obras públicas.
Não se sabe a quem teria sido encomendada a escultura destinada a Belém, mas é certo que a morte de Mendonça Furtado interrompeu a tramitação do projeto, “impedindo assim que em Belém do Pará fosse concretizada a ideia pioneira de uma ‘praça real’, centrada pela primeira estátua régia da arte portuguesa” (Mendonça 2003:6).
É curioso que Julião tenha sido implicado nesse processo, ao realizar um modelo em escala – talvez de cera ou mesmo fundido em bronze – de uma escultura de D. José I planejada para ocupar o centro de uma praça idealizada por Landi no Pará.
Além das maquetes de fortalezas e modelos de esculturas, Julião inclui no rol de suas competências a fundição de peças de artilharia, de que teria dado provas ao próprio conde de Lippe na Aula de São Julião da Barra. Vale lembrar que o Forte de São Julião da Barra era onde estava aquartelado o Regimento de Artilharia da Corte desde sua criação, em 1762.
No mesmo alvará que ordena a constituição do Regimento, cria-se “uma aula em que se dessem lições e fizessem exercícios práticos três dias por semana, sendo hora e meia de manhã e uma hora de tarde” (Cordeiro 1895:262).
Ou bem Julião esteve envolvido com esses ‘exercícios práticos’, ou apenas tencionava impressionar Lippe, diante da falta crônica de fundidores em Portugal, como faz notar Cordeiro (1895:207).
Resta ainda comentar sua declarada habilidade de escultor, comprovada pela execução de um retrato em pedra do conde de Lippe, apresentado ao rei D. José. Sem dúvida, entramos aqui numa seara que ultrapassa a qualificação técnica própria da formação militar, aproximando Julião das expressões de cunho artístico.
É curioso, de todo modo, que o oficial faça tão raras referências à sua destreza no desenho, o que não deixa de ser notado, no entanto, pelo capitão José Sanches de Brito (?-1797), quando louva a conduta honrada de Julião, que, em sua opinião, congrega “todas as Artes precisas a um perfeito Militar, quais são o desenho, a Fortificação, a Fundição dos metais e a fatura de Artilharia”.
É ainda Brito que, no mesmo documento, enfatiza que Julião foi “destacado em uma Palla de Guerra para nela ensinar o serviço de Artilharia a bordo dos Navios”, o que o situa também como um oficial hábil no ensino da artilharia naval53.
3. Embarque para os Estados da Índia
Ainda em referência aos “desembarques” citados no seu Processo Individual, consta que Julião teria também viajado aos “Brasis, Índia e China”**, embora nesse documento as datas de tais viagens não sejam mencionadas.
Mais uma vez, recorremos à documentação constante em outros arquivos, no intuito de esclarecer o caráter das missões de Julião no ultramar português.
Comecemos por destacar uma carta do coronel Weinholtz endereçada ao conde de Lippe e datada de Faro, 21 de maio de 1777. Nela, o coronel do Regimento de Artilharia de Lagos relata que
Mon ancien Régiment fût divisé l’an 1774 en grands Détachements, dont les premiers embarquèrent sur les vaisseaux du Roy, et les derniers, qui étaient de cinq Compagnies, se rendirent par ordre de Sa Majesté dans le pays-ci, où, avec d’autres semblables Détachements tirés des autres Régiments d’Artillerie, se forma, sous les ordres de M. Ferrier, un nouveau Régiment d’Artillerie.55
Artilharia. É de se supor que muito do trabalho de Julião em seu período no Oriente tenha, de alguma forma, se desenvolvido ali.
Para outros eventuais serviços em que Julião pode ter estado envolvido na Índia, é necessário recorrer novamente ao seu Processo Individual. Lá está mencionada uma viagem do oficial a Macau, “aonde foi por insinuação de Martinho de Mello58, Secretário d’Estado, tirar a planta de todo o distrito, que pertence a V. Alteza Real, o que executou com a maior exatidão, e entregou ao dito Ministro”.
Em 1773, segundo lembra Tenreiro (2007), Melo e Castro parece ter tido um interesse especial por Macau, chegando a propor um plano de reforma da cidade. Esta é provavelmente a causa de ter solicitado que fosse tirada a planta do local.
A ordem foi dada ao governador da Índia, que deve tê-la transmitido às autoridades militares em Goa, responsáveis por designar Carlos Julião para a tarefa. É o que nos sugere o capitão José Sanches de Brito, ao escrever que Julião “para tirar a Planta da Cidade de Macau foi mandado aquele Porto pelo Governador, e Capitão General da Índia, cujas Comissões cumpriu com satisfação e honra”.
No entanto, este levantamento, que o oficial afirma ter executado com exatidão e ter entregue ao ministro, não foi localizado nos arquivos consultados em Portugal.
Na verdade, a identificação deste tipo de documento é bastante difícil, visto que frequentemente os desenhos não são assinados ou datados e foram separados da correspondência de que seriam um anexo pela lógica da organização documental dos arquivos portugueses.
A título de exemplo, reproduzimos aqui uma planta de Macau que não traz indicação de autoria e não é datada, mas que é certamente contemporânea do trabalho executado por Carlos Julião. [Figura 66]
Sabemos que Julião só retornaria a Lisboa em julho de 1780. Visto que a Elevação e fachada, obra analisada no capítulo anterior, traz a data de maio de 1779, parece bastante razoável supor que a nau Nossa Senhora da Madre de Deus, em que o oficial servia, tenha ancorado em Salvador no seu retorno da Ásia.
Aliás, convém lembrar, conforme aponta Boxer (2002: 234), que a coroa portuguesa sempre tentou evitar e mesmo proibir que os navios da Carreira da Índia aportassem no Brasil.
Concorriam para essa proibição o grande número de deserções ocasionado pela escala, além do estabelecimento de copioso comércio ilegal de produtos orientais em troca de ouro e tabaco brasileiros.
No entanto, em meados do século XVIII, sob diversos pretextos, que iam da necessidade de reparos, ou da falta de provisões às más condições do tempo, a parada no Brasil, e com maior frequência em Salvador, tornou-se uma prática, e foi mesmo ratificada pelo governo português.
Se considerarmos que a viagem de Salvador a Lisboa durava por volta de dois meses e meio a três meses, e sabendo que Julião chegou a Portugal em julho de 1780, é fácil supor que a nau tenha deixado o Brasil por volta de abril deste ano.
Quanto à data de chegada ao país, contudo, só podemos por enquanto trabalhar com suposições. Diante de uma viagem que levava de seis a oito meses, os navios que deixavam Goa em direção a Lisboa procuravam zarpar ao final de dezembro, na tentativa de evitar chegar à latitude do Cabo da Boa Esperança no auge do inverno, quando a navegação é bastante dificultada pelas tempestades na região. Se é que essa regra se cumpriu no caso da nau Madre de Deus, os viajantes devem ter aportado no Brasil em março ou abril de 1779. Isso nos garante que Julião tenha permanecido no país ao menos por cerca de um ano.
Da mesma forma, permanecemos no campo das hipóteses no que diz respeito aos locais pelos quais teria passado no território brasileiro. É possível auferir de sua produção iconográfica a estadia em Salvador (Elevação e fachada), além de Rio de Janeiro e do distrito diamantino do Serro do Frio, em Minas Gerais (Figurinhas de brancos e negros, da FBN).
Por outro lado, em correspondência trocada entre o governador de Pernambuco, d. Tomás José de Melo, e o secretário Martinho de Melo e Castro, datada de 19 de dezembro de 1788, encontramos uma menção ao nome de Julião.
Na carta, o governador enfatiza a necessidade de reorganização dos regimentos de Olinda e Recife, assim como queixa-se da decadência do corpo de artilharia. Segundo ele, a solução seria trazer para Pernambuco um oficial com patente de capitão, “para o qual posto, me lembro de um muito hábil, que é Carlos Julião, Capitão de uma das Companhias graduadas do Regimento de Artilheria da Corte”.
A citação poderia sugerir que Julião tivesse estado também em Pernambuco, onde teria conhecido o governador. Contudo, sabemos que d. Tomás José de Melo tomou posse do governo da capitania em dezembro de 1787, permanecendo no cargo por onze anos. Por esta época, nosso oficial já estava de volta a Lisboa, onde é mais provável que tenha ocorrido o encontro dos dois.
Fatos importantes ocorreram em Portugal enquanto Julião esteve servindo na Índia, alguns dos quais teriam impacto no prosseguimento de sua carreira no exército. Em 1776, por exemplo, foi ordenada a incorporação de todos os integrantes do antigo Regimento de Artilharia de Lagos (de que Julião fazia parte) ao Regimento de Artilharia da Corte. Por outro lado, a morte de d. José I em fevereiro de 1777 traria ao trono “a piedosa” d. Maria I, provocando o afastamento do até então todo-poderoso ministro, o marquês de Pombal, e dando início ao período conhecido como a “Viradeira”.
No que diz respeito ao exército, a Viradeira representou um certo recuo com relação ao processo de profissionalização do militar que havia sido deflagrado durante o período pombalino. O exército verá voltar à cena, em postos de comando, os antigos aristocratas, como também se generalizará um certo clima de animosidade dirigida aos estrangeiros que serviam como oficiais.
4. O retorno a Portugal e a busca de reconhecimento
É claro que um longo período de serviços nos domínios ultramarinos habilitava os envolvidos a requisitar benefícios em forma de mercês e promoções à Coroa, e não há porque não considerar que Julião tenha se fiado nessa prática, que remontava ao tempo das Descobertas, para esperar por recompensas que julgava merecidas. Com efeito, desde seu retorno a Lisboa em 1780, nosso oficial inicia uma sequência de correspondências em que solicita mercês como pagamento pelos serviços prestados.
Em primeiro lugar, reclama a patente de capitão que lhe havia sido prometida e que, segundo ele, só não lhe fora concedida por se achar ausente da Corte. Como fica bastante claro na seguinte passagem, Julião sentia-se preterido, pois, a não ser pelo embarque para que o nomearam na Nau Nossa Senhora da Madre de Deus, o Sup.te seria Cap.m de Bombeiros na promoção que se fez no seu regimento no ano de 1776, em a qual, por efeito de se achar em distante serviço, foi preterido. Sendo certo que o mesmo General McLean62 deu sua palavra de honra ao Coronel Dalemcour63 de que, logo que o Sup.te chegasse da Índia, o faria Cap.m de Bombeiros, como mostra pela atestação do mesmo Dalemcour.
63 Luís D’Alincourt, coronel do Regimento de Artilharia da Corte.
É portanto, na certeza de sua promoção a capitão, que deveria acontecer assim que encerrada a viagem à Ásia, que Julião assina a prancha da Elevação e fachada, o prospecto de Salvador, como “Capitão de mineiros do Regimento de Artilharia da Corte” (grifo nosso).
Note-se que, conforme o documento do AHU, os oficiais chegados do serviço na Índia deveriam ser incorporados ao Regimento de Artilharia da Corte nos postos que estivessem vagos.
Portanto, em nossa opinião, a nomeação para comandar uma companhia de mineiros não pode ser vista como uma opção feita pelo oficial, ou mesmo que o fato pressuponha algum tipo de especialização ou expertise65.
Julião tinha, como vimos, uma sólida formação como oficial de artilharia, para o que era necessário reunir conhecimentos na área da manufatura de armas de guerra – o fabrico da pólvora para projéteis, bombas e minas, das melhores ligas para fundição de peças de bronze para canhões e outros instrumentos bélicos, além de ter domínio da matemática e física para ser capaz de calcular a trajetória de um projétil, o que influi no cálculo de sistemas de defesa e fortificação. No entanto, nos parece um tanto excessivo considerá-lo “engenheiro, especialista em metalurgia, mineralogia e química” (Lara 2007:242).
É claro que, sendo a artilharia a arma mais “científica” do exército, existia uma proximidade a relação entre a prática do oficial de artilharia e a do engenheiro militar, como destacado por Lyra Tavares, reflete o que ele chama de “binômio artilharia-engenharia” (Tavares, 1965).
A origem da engenharia militar, como corporação, está nas companhias de artífices e mineiros dos regimentos de artilharia.
No entanto, não há qualquer documentação que comprove que Julião tenha atuado como engenheiro militar em sua carreira.
Mesmo as vistorias de fortificações a que foi designado mais tarde, como veremos, referem-se à avaliação do estado da artilharia e das munições, e não das condições físicas das edificações.
A patente de capitão, que Julião tanto almejava, só seria confirmada em julho de 1781, quando ele assumiu o comando da companhia de mineiros.
Contudo, o desejo de ser recompensado pelos seus dezessete anos de dedicação ao exército o levou a solicitar, logo após seu retorno a Lisboa, em setembro de 1780, a mercê do Hábito da Ordem de Cristo com a correspondente tença, como pagamento pelos serviços prestados no ultramar.
Alega que seus serviços não foram devidamente remunerados. Embora o documento não deixe dúvidas sobre a validade dos serviços prestados por Julião, a mercê não lhe foi concedida.
Anos depois, em 1789, Julião desistiu de receber o benefício do Hábito da Ordem de Cristo, aceitando apenas uma tença.
A decisão foi tomada após perceber a “repugnância” da autoridade competente em conceder-lhe a mercê, e ele preferiu se conformar com a “real vontade”.
Juntou à sua solicitação uma declaração de renúncia de tença, que foi formalizada pelo tabelião da cidade de Oeiras, Manoel Freire de Faria. Dessa vez, uma tença efetiva de 65 mil réis foi concedida, com base nos seus serviços como segundo e primeiro-tenente. A renúncia ao benefício foi, então, formalizada.
Em dezembro de 1790, Julião volta a requerer o reconhecimento real, requisitando agora o Hábito da Ordem de São Bento de Avis e tença equivalente, novamente com possibilidade de renunciar.
A “repugnância” de d. Maria I parece não ter sido tanta dessa vez, já que em janeiro de 1791 lhe é passada a carta de padrão do Hábito da Ordem de Avis, com tença efetiva de 45 mil réis e possibilidade de renúncia de parte dela, 33 mil réis, a que ele renuncia em favor de d. Ana Apolónia de Vilhena Abreu Soares.
Em março, assina-se o alvará para que Julião seja armado Cavaleiro da Ordem, acompanhado de carta de hábito, alvará de profissão e carta de quitação.
Antes de seguir adiante, cabe citar Fernanda Olival, que nos lembra “o quanto a liberalidade, o gesto de dar, era considerado, na cultura política do Antigo Regime, como virtude própria de reis” (2001:15), e o quanto a sobrevivência e a longevidade da monarquia portuguesa (como também de outras) dependeram dessa capacidade de retribuir os serviços políticos, administrativos e militares prestados em seu nome com honras, benefícios e privilégios. Desde 1551, a Coroa portuguesa havia incorporado perpetuamente por bula papal o controle dos Mestrados das três ordens militares do reino – a de Cristo, de Santiago e de São Bento de Avis – descendentes das ordens medievais de cavalaria ligadas às cruzadas à Terra Santa e às batalhas de reconquista da Península Ibérica aos mouros.
Em pleno século XVI, os mouros já não representavam uma ameaça tão relevante, pelo menos não em território luso. Interessava, ao contrário, enfrentá-los em suas próprias terras, no norte da África, assim como estender mais e mais o poderio de Portugal pelos territórios recém-conquistados.
A distribuição honorífica das ordens passou a estar então diretamente relacionada seja à defesa das praças da África, seja a períodos de serviço à Coroa nos Estados da Índia. Para a África, exigia-se, no entanto, um período menor de permanência (cerca de três anos), já que as oportunidades de enriquecimento ali eram quase inexistentes.
Ao contrário do que acontecia na Índia, por sua vez, onde o tempo de serviço exigido não só era maior, como os feitos que justificavam a concessão da mercê deveriam ser particularmente notáveis.
De fato, nenhum hábito ou comenda podia ser alcançado sem que fosse por remuneração de serviços feitos à Coroa, noção que estava claramente enraizada na sociedade portuguesa desde finais do Quinhentos.
Outra bula papal, de 1570, passou a limitar a concessão de mercês e comendas das três ordens militares portuguesas a requerentes que pudessem comprovar “pureza de sangue” (não ascendência judia ou moura), como também “limpeza de ofícios”, já que os contemplados não poderiam ser filhos ou netos de oficiais mecânicos. Consequentemente, do ponto de vista do seu estatuto social, um cavaleiro do hábito era – e assim foi visto até o século XVIII – antes de tudo, um servidor honrado do rei, ao que se acrescentava ser “limpo de sangue e com patrimônio suficiente para não sujar as mãos com trabalho” (Olival 2001:56). Essa situação perdurou até 1773, quando foram abolidas em definitivo as distinções entre cristãos-novos e cristãos-velhos em Portugal.
Das três ordens militares, a de Cristo era de longe a mais procurada e a mais prestigiosa. Ainda segundo Olival, “acontecia por vezes de se solicitar uma comenda ou hábito sem especificar a ordem. Aceitava-se, contudo, com maior satisfação, a insígnia de Cristo” (2001:8).
Não é, portanto, de admirar que Julião a tivesse requerido em sua primeira tentativa. Entretanto, uma carta de lei de 19 de junho de 1789 expedida pela rainha d. Maria I procede a uma grande reforma na regulamentação das ordens.
Fica estabelecido, a partir de então, que os serviços militares seriam recompensados exclusivamente com a Ordem de Avis, enquanto a Ordem de Santiago serviria a agraciar os magistrados, reservando-se a insígnia de Cristo para os cargos políticos e para os altos postos civis e militares.
As ordens militares passaram a ser, então, menos uma concessão de privilégios que um reconhecimento de distinção profissional. Não há dúvidas que Julião tenha visto, nessa reforma promovida pela rainha, a sua chance de condecoração.
Quase nada se sabe sobre as atividades de Carlos Julião no período de quinze anos em que serviu no Regimento de Artilharia da Corte, mas uma pista nos é fornecida mais uma vez pela documentação do AHM. Em seu Processo Individual menciona-se que foi encarregado pelo marechal-general, Duque de Lafões73, “de .vizitar toda a Artilharia das Fortificações da Província de Estremadura, de que deu exata carta, apresentando relações as mais bem circunstanciadas do estado da artilharia e munições de guerra que nas mesmas existiam, incumbência esta que certamente foi cumprida entre 1791 e 1795.
5. Arsenal Real do Exército
Nesse ano de 1795, Julião recebe sua primeira patente de oficial superior, a de sargento-mor, agora com exercício no Arsenal Real do Exército. Neste local, passaria a se desenrolar o restante de sua carreira militar.
Quando Julião foi transferido para o Arsenal do Exército, este era um dos maiores estabelecimentos fabris de Portugal, empregando mais de mil funcionários distribuídos em 25 diferentes oficinas.
Ali se concentrava todo o processo de confecção de material de guerra (armas e munições) para suprimento do exército e da marinha do país, assim como a logística de seu armazenamento e distribuição para as forças militares do Reino e ultramar.
Em suas oficinas, eram produzidos ainda todos os componentes dos uniformes de oficiais servindo na corte e colônias, além de outros artefatos, como, por exemplo, instrumentos cirúrgicos.
O Arsenal abrigava ainda um importante centro de formação artística, a Aula de Desenho, Gravura e Lavra de Metais, tendo sido confeccionadas em suas oficinas duas das obras mais representativas da arte portuguesa do final do Antigo Regime: a estátua eqüestre de d. José I e a baixela de prata oferecida pelo regente d. João ao duque de Wellington em 1814.
No último quartel do século XVIII, o Arsenal compreendia um complexo de três edifícios: as chamadas Fundições de Baixo, de Cima e de Santa Clara. A Fundição de Baixo funcionava no edifício hoje ocupado pelo Museu Militar de Lisboa, que veio a substituir antigos depósitos de artilharia destruídos pelo terremoto de 1755.
A Fundição de Cima fora instalada em edifícios fronteiriços ao templo de Santa Engrácia, atual Panteão Nacional, adaptados no início dos anos 1760 para abrigar a fabricação de bocas de fogo.
Na década de 1770, o conjunto foi acrescido da Fundição de Santa Clara, construída sobre as ruínas do antigo convento de clarissas datado do século XIII, um dos mais importantes edifícios conventuais de Lisboa, totalmente arrasado pelo terremoto.
Ali ficaram concentradas as fábricas de armas, bem como casas para habitação de oficiais.
A organização do Arsenal, assim como o incremento substantivo de sua atividade nesse período, deve ser entendida no contexto das reformulações conduzidas nas forças armadas portuguesas pelo conde de Lippe, responsável por renomear a antiga Tenência para Arsenal Real do Exército.
Bartolomeu da Costa (1731-1801) também desempenhou um papel essencial no comando da instituição, que exerceu de 1762 até sua morte. Militar de carreira e engenheiro, Costa destacou-se como o mais notável fundidor de artilharia em Portugal, sendo responsável por regular os calibres das bocas de fogo e construir fornos especializados para as atividades fabris.
Em 1774, foi promovido a brigadeiro e nomeado Intendente Geral das Fundições como reconhecimento pelos serviços prestados na fundição da estátua eqüestre de d. José I.
Para entender as atividades de Julião no Arsenal, é necessário recorrer ao seu Processo Individual. Um parecer assinado por Bartolomeu da Costa, datado de 31 de março de 1800, é dirigido ao Ministro da Guerra e destaca as incumbências de Julião. No documento, lê-se que Julião foi designado por Sua Alteza Real para auxiliar o Regimento de Artilheria Francezes Emigrados, requisitando do Arsenal os géneros necessários para as reparações do trem deste regimento e dos armamentos da Armada Auxiliar Britânica. O parecer elogia o oficial por sua dedicação e zelo em todas as tarefas.
Em 1800, aos 60 anos, Julião inicia o processo de requisição de nova promoção ao posto de tenente-coronel. Sua nomeação, justificada pelo tempo de serviço e pelas atividades realizadas no Inventário do Arsenal Real, foi concedida em 14 de novembro de 1802, embora a carta patente tenha sido emitida apenas em novembro de 1804.
Por ocasião dessa solicitação, Julião redigiu um documento, atualmente anexado ao seu Processo Individual, preservado no AHM (Arquivo Histórico Militar). Nesse texto, ele lista suas principais conquistas no exército português, embora sem datas específicas. Esse documento foi utilizado como base por autores como Cunha (1960), Lara (2002 e 2007) e Tenreiro (2007 e 2008) para compor biografias de Julião.
No ano de 1801, Carlos Julião aparece como tradutor de uma obra publicada pela Tipografia do Arco do Cego, intitulada Experiências e observações sobre a liga dos bronzes, que devem servir nas fundições das peças de artilharia, de Carlos Antonio Napion, tenente-coronel da Artilheria da Corte. A tradução, realizada por Julião, é creditada como:
“Carlos Julião, sargento-mor com exercício no Arsenal Real. Lisboa na Typographia Chalcographica, Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego. Anno MDCCCI.”
Por Ordem Superior. Seu autor, o oficial Carlo Antonio Galeani Napione, era também natural de Turim e havia chegado a Portugal no ano anterior, a convite do secretário da Marinha e Ultramar, d. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812)80.
É conhecido por inúmeras iniciativas no sentido de racionalização da administração financeira do Estado, em especial quando foi Presidente do Real Erário entre 1801 e 1803, além do notável impulso dado à produção e difusão de saberes científicos por meio, por exemplo, do financiamento a viagens exploratórias e da criação da Casa Literária do Arco do Cego. Partidário da manutenção da aliança inglesa, Sousa Coutinho parece ter sido um dos articuladores da transferência da família real para o Brasil, que ele acompanhou em 1808. Nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, foi agraciado com o título de conde de Linhares.
Carlos Antonio Napione era irmão do conde Gian Francesco Galeani Napione (1748-1830), renomado historiador da corte dos Savoia. Destinado à carreira militar, iniciou sua formação como cadete do Corpo Reale d’Artiglieria em 1771. Aluno de destaque, logo se tornaria instrutor de exercícios práticos na Scuola di Artiglieria, destacando-se nos estudos de mineralogia e química metalúrgica. Em 1783, Napione tornou-se sócio efetivo da Reale Accademia delle Scienze di Torino, no ato de sua constituição.
Entre 1787 e 1790, Napione realizou uma importante viagem de pesquisa científica ao lado do major Francesco Azimonti (1757-1822), sob ordens do rei Vittorio Amedeo III (1726-1796). A dupla percorreu países como Áustria, Alemanha, Hungria, Transilvânia, Suécia, Inglaterra e Escócia, reunindo conhecimentos sobre mineralogia e metalurgia que fortaleceriam as ciências naturais no Reino da Sardenha.
De volta ao Piemonte, Napione foi promovido a capitão e nomeado membro do Consiglio delle Miniere do Reino. Ele assumiu a direção do Laboratorio Metalurgico e do Museo do Regio Arsenale di Torino, consolidando sua reputação. Em 1795, foi nomeado inspetor das minas do Reino da Sardenha (Burdet 1991).
Dois anos depois, Napione publicou o primeiro tratado italiano de mineralogia, intitulado Elementi di Mineralogia esposti a norma delle più recenti osservazioni e scoperte (Turim, 1797). Nesse trabalho, propôs um método de classificação baseado nas “características complexas”, utilizando as propriedades físicas dos metais, como cor, luminosidade, transparência, dureza e configuração externa. Esse método representou o auge da fase descritiva da mineralogia, respondendo às demandas práticas da indústria de minérios.
Napione manteve proximidade com d. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, que servia como ministro plenipotenciário português junto à corte dos Savoia. D. Rodrigo, em correspondências, destacava a importância da colaboração de Napione para o progresso do exército luso (Burdet 1991).
A oportunidade de cooperação surgiu com a invasão do Piemonte por Napoleão Bonaparte (1769-1821) em 1798. Alegando motivos familiares e de saúde, Napione pediu dispensa e, em 1800, transferiu-se para Lisboa, onde foi agregado ao Regimento de Artilharia da Corte com patente de tenente-coronel.
Por iniciativa de Coutinho, Napione realizou uma viagem de exploração científica pelas províncias de Estremadura e Beira, acompanhado pelos irmãos brasileiros José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1775-1844). Esse período marcaria a colaboração científica entre Portugal e Napione, destacando sua contribuição para o desenvolvimento das ciências aplicadas ao exército português.
Em 1801, torna-se membro correspondente da Academia Real de Ciências de Lisboa e é nomeado inspetor do Arsenal Real do Exército, em substituição ao lendário Bartolomeu da Costa, falecido naquele ano. No ano seguinte, assume também a direção da Fábrica de Pólvora de Barcarena e da Fábrica de Refino de Salitre de Alcântara. Promovido a brigadeiro em 1807, acompanhou a transferência da família real para o Brasil.
No Rio de Janeiro, a atividade de Napione não foi menos notável. Foi feito membro do Conselho de Guerra do príncipe regente d. João, assim como inspetor geral da Artilharia. Fundou a Fábrica Real de Pólvora anexa ao Jardim Botânico, e foi o primeiro comandante da Academia Real Militar, onde ocupava-se das cadeiras de mineralogia, química e física. Quando faleceu no Brasil, tinha patente de tenente-general.
O fato de Julião ter traduzido a obra de um conterrâneo, oficial de carreira como ele e que era seu superior na mesma unidade, são indícios suficientes para supor uma ligação com Napione, que, ademais, pode ser confirmada também por meio de outros documentos além da publicação citada acima. Mais importante, esta proximidade traz à tona um especial interesse de Julião pelas ciências naturais, que, até então, não era de todo perceptível em sua trajetória.
Com efeito, encontramos menção mais explícita a esse interesse em ofício dirigido em 1803 pelo governador de São Paulo, Antonio José da Franca e Horta (1753-1823), ao visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo (1755-1809), então secretário da Marinha e Ultramar. Neste ofício, o governador afirma que
Tendo-me mostrado o Sargento-Mor Carlos Julião da Fundição huma Collecção de Madeiras de todo o nosso Reino, e América, incluída huma única desta Capitania, me rogou lhe mandasse as que me fossem possíveis, ou todas p.a bem de completar a sua Collecção.82
Também Burdet (1986) reproduz um comentário de Napione sobre a coleção de madeiras constituída por Carlos Julião:
Il colonello Julião, che ha fatto uno studio particolare sui legni, di cui possiede una ricca collezione, ha avuto la bontá di prestarsi alle mie richieste e mi ha comunicato alcune interessantissime osservazioni su un certo numero di essi.83
Vale destacar que o mesmo Burdet (1991) assinala o interesse da Accademia delle Scienze di Torino sobre o estudo das madeiras do Brasil que Napione, sócio da instituição desde sua fundação, conduzia a partir de Lisboa. Em sua biografia do oficial-cientista, o autor reproduz a carta de um sócio da Accademia datada de 1806, em que se lê:
Fra pochi giorni avrò tra le mani il manoscritto, e serie delle belle, ed originali esperienze sulla forza, e durezza dei legnami, segnatamente di quelli del Brasile del nostro Cav. Napione, il quale pure già mi diede il permesso di darne un estratto a quest’Academia. Essa è già tradotta in francese, e si finisce la traduzione portoghese, e vi sono varie tavole comparative84.
A dedicação de Carlos Julião ao estudo das árvores e madeiras ultrapassou a simples formação de uma coleção de amostras. Um exemplo disso é o manuscrito de sua autoria, datado de 1801, que possui o extenso título:
“DICCIONARIO HISTORICO DAS ARVORES, E ARBUSTOS que contem os nomes, e synonymos de cada huma dellas tirado dos melhores Auctores, que escreverão nesta materia: Augmentado consideravelmente de muitas Arvores das Conquistas de Portugal athe ao prezente não descriptas: Com a rezumida narração que se pode alcançar nas suas Naturalidades, Troncos, Ramos, Cascas, Folhas, Flores, Fructos, Balsamos, Gommas Rezinas, Oleos, e quanto nellas ha de mais notavel para as distinguir.
OBRA DE SUMMA INSTRUCÇÃO – Pelo conhecimento que dão das differentes madeiras, sua solides, e utilidades para a construcção das obras dos Arcenaes, Edificios, e todos os artefactos que com ellas se constituem para a Economia Domestica, e Utilidade Publica.
POR CARLOS VALENTIM JULIÃO – Cavalleiro Professo na Real Ordem Militar de S.Bento de Avis, por Sua Alteza Real O Principe Regente Major de Artilharia com Exercicio no Arcenal Real do Exercito, Membro da Inspecção Militar, &c. LISBOA MDCCCI”.
Este manuscrito evidencia o empenho de Julião em catalogar e estudar a diversidade botânica, sobretudo das árvores e arbustos das colônias portuguesas, incluindo características detalhadas como troncos, ramos, cascas, flores, frutos e as diversas aplicações das madeiras na economia doméstica e na construção civil. A obra demonstra a ambição de Julião em sistematizar conhecimentos botânicos e práticos, contribuindo tanto para a ciência como para as necessidades militares e econômicas do Reino de Portugal.
Tudo indica tratar-se de um projeto de publicação: as folhas são todas pautadas, numeradas sequencialmente no canto superior direito, sendo cada folha dividida em duas colunas de texto. As entradas dos verbete do dicionário são feitas em diferentes grafias: letra de forma para a designação em português; letra cursiva para o nome em francês; novamente letra de forma, mas com tinta sépia para a versão latina ou científica.
Quando o nome em francês ou latim não existem, o nome em português é repetido três vezes. A maior parte dos verbetes tem entre cinco e quinze linhas de extensão, sendo que alguns, no entanto, ocupam toda uma coluna. Infelizmente, na altura da letra C, o manuscrito já começa a ficar de difícil leitura, devido ao repasse da tinta ferrogálica.
O volume tem encadernação de couro com vestígios de douração na capa, onde é possível perceber a marca de um antigo brasão, certamente indicativo do proprietário anterior. É importante assinalar que não há nenhuma ilustração no manuscrito.
Mas vejamos que tipo de abordagem Julião nos apresenta em seu dicionário com relação às espécies descritas.
Tomando dois exemplos ao acaso:
- Acajaiba / Acajaiba / Acajaiba
Árvore grande do Brasil, espécie de Caju a que dão o nome de Cedro de St. Domingos. O tronco é tão grosso, que dele fazem canoas de 40 pés de comprimento, com 6 de largo. O pau é avermelhado, e também o há manchado de amarelo e branco, recebe bom polimento e dificilmente apodrece, dele se fazem móveis que comunicam seu suave cheiro às roupas. A casca é parda e grossa, as folhas pequenas de verde escuro, o fruto em forma de coração, sempre verde, encerra comumente 4 amêndoas muito amargosas cobertas de pele grossa. - Baonilha / Vanille / Vanilla
Arbusto que trepa pelas árvores a modo de hera, as folhas de verde claro agradáveis à vista, compridas, estreitas e pontiagudas. Depois de sete anos, dá umas bainhas que encerram grãozinhos miúdos, misturados com uma espécie de polpa escura balsâmica e muito cheirosa, que é o principal ingrediente do chocolate, ao qual comunica admiráveis propriedades. Há de três espécies que diferem no tronco, ou no diverso grão de maturidade. A primeira, dita Pompona ou Bova, tem o cheiro muito forte; a segunda, mais comprida, tem um cheiro delicioso, deste se usa com o nome de Baonilha legítima; a terceira tem pouco cheiro, a melhor é a do México ou Peru, a do Indostão é de uma grossura monstruosa e tem o cheiro de ameixa. Em outro tempo, este ingrediente servia para perfumar o tabaco, mas os cheiros estão, como as mais coisas, sujeitos à moda.
O Diccionario de Julião merece alguns comentários. A própria escolha do formato de dicionário para dispor a informação remete à estrutura da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, o grande paradigma da Ilustração na sistematização do conhecimento. O fato de ser uma “obra de summa instrucção”, como se afirma no título, também vem de encontro às expectativas e à orientação do iluminismo em Portugal, assim como no resto da Europa, sobre a divulgação de “conhecimentos úteis”.
No Prólogo que introduz sua obra, Julião argumenta que “não se trata nesta descripção de systema algum Botanico, nem das virtudes Medicinaes das Plantas”, tarefa que compete aos grandes cientistas e não a um homem como ele, de “pequenas luzes”.
Assim, o autor se preserva, em certa medida, da responsabilidade de, não sendo cientista, aventurar-se na realização de uma obra que resvala no estudo científico. Mais relevante é que, ao fazê-lo, Julião enfatiza a importância do saber prático, da experiência que ensina a reconhecer a utilidade e o uso apropriado dos recursos naturais à disposição.
Das espécies incluídas no Diccionario, as árvores são aquelas a que o autor dedica mais atenção, afirmando que o “Conhecimento, e combinação da força e consistencia das Madeiras para qualquer construção, he por certo o ponto mais interessante, e principal objecto a que este tractado se dirige”.
Certamente, a determinação de dados sobre a resistência das madeiras só poderia ser alcançada por meio de experiências, e, de fato, o autor alude no Prólogo a experiências desse gênero conduzidas no Arsenal.
Possivelmente, se tratem dos mesmos experimentos a que se dedicava Napione, referidos por Burdet (1991).
Conclui dizendo que “tudo da madeira se aproveita: pois quando não serve para obras, serve para queimar, ou p.a fazer Carvão, e athe as proprias Cinzas nas barrelas se aproveitão”.
Portugal seria efetivamente implicado no conflito em fevereiro de 1801.
Em apenas dezoito dias, as forças militares espanholas tomaram todas as principais praças do Alto Alentejo, o que causou a queda do octogenário duque de Lafões e obrigou a coroa a pensar em novos nomes para o comando do exército luso.
A guerra, afinal, teria curta duração, já que o tratado de paz seria assinado em Madri em setembro de 1801. Contudo, ela seria o preâmbulo da Guerra Peninsular, desencadeada quando da invasão francesa a Portugal em 1807.
É desnecessário, e mesmo excessivo, retomar aqui as implicações dos acontecimentos deflagrados a partir de então, bastando lembrar do evento que mais consequências teria sobre a história de Portugal e suas colônias, bem como sobre a carreira de Carlos Julião: a transferência da família real e sua corte para o Brasil.
Embarcado no cais de Belém naquele 27 de novembro de 1807 ia o brigadeiro Carlo Napione, que, como vimos, teria um importante papel a desempenhar no Rio de Janeiro.
O brigadeiro deixava vago, portanto, o cargo de inspetor do Arsenal Real do Exército e das Fábricas de Pólvora de Barcarena e de Refino do Salitre de Alcântara.
Por portaria datada do mesmo dia, emitida do Quartel da Junqueira, Julião era informado que o “Senhor General Marques de Vagos ordena que Vossa Senhoria fique fazendo as Vezes do Inspector do Arsenal Real do Exercito athe nova ordem do mesmo Senhor”. Vale lembrar que em abril de 1805, o oficial tinha recebido a patente de coronel de Artilharia.