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Rio de Contas, uma das mais antigas cidades da região da Chapada Diamantina, destaca-se pela sua arquitetura barroca do século XVII, preservada até hoje. Em 1745, no auge da exploração do ouro, foi planejada como a primeira cidade planejada do Brasil, refletindo a prosperidade da época.
Rio de Contas é lar de comunidades de descendentes de portugueses que preservam tradições culturais e costumam casar-se apenas entre si, residindo a 1500m acima do nível do mar.
Em outra área, a 1050m, estão situadas as duas comunidades negras, formadas por descendentes de africanos.
O arquivo histórico municipal de Rio de Contas guarda valiosos documentos, como cartas de alforria, sentenças eclesiásticas e certidões de escravos, que oferecem um panorama histórico do local.
A rica flora da região chamou atenção de pesquisadores. Em 1974, mais de 100 estudiosos ingleses e brasileiros realizaram um extenso estudo sobre a diversidade local, identificando mais de 1100 espécies, sendo mais de 100 delas desconhecidas até então.
Resumo da História de Rio de Contas
A colonização da região de Rio de Contas iniciou-se no final do século XVII, com escravos foragidos instalando-se na margem esquerda do rio de Contas Pequeno, onde hoje está a cidade de Brumado. Este local rapidamente se tornou um ponto de pouso para viajantes das Minas Gerais e de Goiás que seguiam em direção a Salvador.
Passava por ali um caminho que ligava o Vale do Rio São Francisco ao litoral, o que incentivou a fundação do povoado de Creoulos, onde foi construída uma capela dedicada a Nossa Senhora de Santana, cujos alicerces ainda existiam no início do século XX.
Subindo o rio Brumado, o bandeirante paulista Sebastião Raposo descobriu ouro na década de 1710, dando origem à povoação de Mato Grosso, onde os jesuítas construíram, segundo a tradição, a Igreja de Santo Antônio.
Em 1715, os mesmos paulistas fundaram uma nova povoação rio abaixo, onde ergueram a Capela de Nossa Senhora do Livramento.
Para controlar a evasão do quinto (imposto sobre o ouro) e as desordens, o Conde de Sabugosa nomeou o sertanista baiano Pedro Barbosa Leal para fundar vilas na região.
A prosperidade em torno da mineração levou, em 1718, à criação da freguesia de Santo Antônio de Mato Grosso, a primeira no alto sertão baiano. Em 1724, o Vice-Rei Dom Vasco Fernandes encarregou o coronel Pedro Barbosa Leal de criar a Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. Em 1726, foi estabelecida a obrigatoriedade de instalar casas de fundição na região.
A descoberta de ouro atraiu bandeirantes paulistas e favoreceu a ocupação deste trecho da Chapada Diamantina.
Em 1745, a vila foi transferida para um novo local, denominado Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento e Minas do Rio de Contas, facilitando o controle das lavras de ouro aluvional.
A estagnação da cidade iniciou-se em 1800, com a queda da produção de ouro, e se agravou a partir de 1844 com a emigração para as minas de diamantes recém-descobertas em Mucugê.
Contudo, a cidade continuou em atividade com a criação da Casa de Fundição, que trouxe o desenvolvimento da joalheria e da metalurgia artesanal local.
Os maiores recolhimentos do quinto ocorreram após a criação da vila, e o município, rico em ouro de aluvião, expandia-se até o Estado de Minas Gerais. Mesmo com a queda na produção, Rio de Contas permaneceu uma escala no Caminho Real, rota importante para o sudoeste da Bacia do Rio São Francisco e passagem para romarias religiosas rumo ao Bom Jesus da Lapa.
Em 1868, foi criado o distrito de Vila Velha, anexado à Vila de Minas do Rio de Contas, que foi elevada a cidade em 1885 e renomeada para Rio de Contas em 1931.
Com o esgotamento das jazidas, a economia local diversificou-se para o artesanato e agricultura de café, cana-de-açúcar, cereais e tubérculos. Novas corridas de ouro ainda ocorreram nos anos de 1932 e 1939, renovando temporariamente a mineração na região.
Rio de Contas: Conheça a história do processo de formação da cidade
Este artigo tem o objetivo de apresentar a análise do processo de formação da cidade de Rio de Contas – BA nos séculos XVIII e XIX e as conexões regionais que resultaram na produção da rede urbana e do território.
Do ponto de vista metodológico, as análises são balizadas pela revisão bibliográfica, para embasamento teórico conceitual, e pela pesquisa documental realizada nos acervos do IPHAN e no Arquivo Público Municipal de Rio de Contas, para o levantamento de dados e mapas históricos sobre a formação do núcleo urbano.
Com o conjunto de dados sistematizados foi possível atestar que a cidade de Rio de Contas teve o seu processo de formação associado ao contexto colonial de dependência à Coroa Portuguesa, cuja principal atividade econômica era a exploração aurífera.
Em sua materialidade, Rio de Contas se revela como um importante estudo de caso para compreender a formação e desenvolvimento de cidades nos séculos XVIII e XIX no Brasil. A análise in loco do núcleo histórico tombado pelo IPHAN permitiu identificar as permanências e transformações da forma urbana, ocorridas ao longo do tempo.
1. Introdução
O município de Rio de Contas, no estado da Bahia, se originou em meados do século XVIII, no período do auge da exploração aurífera na região, sendo este o primeiro núcleo urbano que desencadeou a formação das localidades circunvizinhas. Hoje, o município está inserido no território de identidade da Chapada Diamantina. A Figura 1 apresenta a localização e os atuais limites do município de Rio de Contas.
A exploração aurífera e o contexto histórico e econômico próprios da colonização deixaram suas marcas no espaço urbano e nos espaços rurais de Rio de Contas. Embora, atualmente, as ações de fomento ao turismo na Chapada Diamantina tenham como foco o patrimônio natural ambiental, acreditamos que o presente trabalho pode contribuir para compreender a formação e desenvolvimento de Rio de Contas, nos séculos XVIII e XIX, e o papel dessa cidade na história da urbanização do Brasil. Serão analisadas as primeiras ocupações dos sertões baianos por meio do avanço da colonização para o interior, com as ações dos jesuítas e bandeirantes, e da abertura da estrada real e demais estradas, que ampliaram o fluxo de pessoas e mercadorias a partir da descoberta das minas. Essa abordagem foi essencial para compreender os processos históricos da formação desse espaço urbano.
Do ponto de vista metodológico, em um primeiro momento, priorizamos a revisão de literatura sobre a formação de núcleos urbanos ligados à mineração no período colonial, para delimitar uma base teórica conceitual. Em seguida, debruçamo-nos sobre o levantamento e análise de dados disponibilizados pela equipe local do IPHAN e pelo Arquivo Público Municipal de Rio de Contas. Ademais, foram coletados dados históricos que dizem respeito ao território da Chapada Diamantina como um todo e, com isso, se iniciou uma triagem de materiais que permitisse delimitar a rede urbana na qual a cidade de Rio de Contas – BA está inserida, definindo o recorte espacial da pesquisa.
Com base nos dados levantados, também foi possível produzir material cartográfico que auxiliou na compreensão da evolução territorial e das relações políticas e comerciais que existiam no contexto regional baiano. Foram ainda levantados dados primários por meio do trabalho de campo na cidade de Rio de Contas, como o registro fotográfico e observações in loco da paisagem urbana. Essa etapa final da pesquisa viabilizou a análise das permanências e transformações da forma urbana, ocorridas ao longo do tempo.
(1) Municípios que compõem o Território de Identidade da Chapada Diamantina: Abaíra, Andaraí, Barra da Estiva, Boninal, Bonito, Ibicoara, Ibitiara, Iramaia, Iraquara, Itaetê, Jussiape, Lençóis, Marcionílio Souza, Morro do Chapéu, Mucugê, Nova Redenção, Novo Horizonte, Palmeiras, Piatã, Rio de Contas, Seabra, Souto Soares, Utinga e Wagner (Bahia, 2016).
2. Formação de arraiais, freguesias e vilas no território de Rio de Contas
Em 1681 já havia movimentos de bandeiras nos sertões que hoje correspondem ao território de Rio de Contas. Povos originários que por ali viviam foram capturados e outros acabaram fugindo, adentrando por terras que ainda eram desconhecidas pelos portugueses. Os bandeirantes enfrentaram, portanto, grande dificuldade para escravizar a população nativa, e essa mobilidade pelos sertões (2) produziu alterações importantes, como descreve Vasconcelos:
De terra de índios, o sertão transmuta-se em terra de ninguém e em terra de alguns. A política de aldeamentos, as fazendas de gado e a mineração conferiram outras feições aos povoados, completada pela criação de vilas e freguesias e implantação efetiva das estruturas de poder colonial” (2015, p.47).
(2) De acordo com Fonseca (2011), o termo sertão era utilizado para designar as regiões ainda não conquistadas e não exploradas pelos portugueses no Brasil colonial, sendo, portanto, o limite de separação entre regiões povoadas pelos colonizadores e aquelas povoadas por indígenas ou quilombolas. No sentido do colonizador, o sertão representava um interior desconhecido que pode ser caracterizado como espaço selvagem e mítico e, em alguns casos, como uma região que adentra o território e é distante da zona litorânea. A busca por ouro e pedras preciosas e a necessidade de mão de obra escravizada fomentaram as bandeiras e tiveram como consequência, em alguns casos, a formação de povoados que são fruto do desbravamento desses sertões.
Os jesuítas tiveram ação protagonista no processo de “docilização” e de exploração da força de trabalho dos povos originários, que eram vistos pelos colonizadores como amigáveis e detentores de conhecimento estratégico do território. Os religiosos chegavam de maneira pacífica nas aldeias e, por meio da fé, obtinham a confiança dos povos originários e adesão aos propósitos colonizadores. Por conhecer muito bem o território, a população nativa viabilizou a ampliação da área explorada pelos bandeirantes.
A colonização do território em questão teve início no final do século XVII, quando escravos foragidos se instalaram na margem esquerda do rio de Contas Pequeno (atualmente denominado rio Brumado, afluente do rio de Contas) e fundaram o povoado de Creoulos (3). Em pouco tempo, a localidade tornou-se pouso para viajantes oriundos das Minas Gerais e de Goiás que seguiam, pelo caminho que por ali passava, em direção a Salvador. Nessa localidade foi edificada uma capela, sob a invocação de Nossa Senhora de Santana, cujas ruínas perduraram até o início do século XX (IPHAN, 2023).
(3) O local do povoado de Creoulos corresponde, atualmente, à cidade de Brumado – BA.
Subindo o rio Brumado, o paulista Sebastião Raposo descobriu ouro, na década de 1710 e, nas proximidades dessas lavras, fundou-se o arraial de Mato Grosso, onde, segundo a tradição, os jesuítas construíram a Capela de Santo Antônio. Os arraiais eram caracterizados inicialmente como locais de parada momentânea, considerados acampamentos quando se encontravam minas para exploração. Com o passar do tempo, ganharam a forma de vilarejos. No século XVIII, o termo “arraial” ganha o sentido de povoado nas zonas mineradoras da colônia e, por vezes, tinha caráter efêmero, pois os mineradores buscavam a maneira mais fácil de exploração aurífera, próximo de córregos e rios (Fonseca, 2011). O arraial de Mato Grosso cresceu em função da mineração e, em 1718, criou-se a freguesia de Santo Antônio de Mato Grosso, a primeira do alto sertão baiano.
No período colonial vigorava o regime do padroado em toda a extensão do império português. Desse modo, se relacionava a política colonizadora com a presença da Igreja Católica na formação de novos núcleos urbanos. A obtenção de sesmarias estava ligada à doação de partes dessas terras para a constituição do patrimônio de capelas. Por sua vez, a formação dos núcleos urbanos respeitava as normativas da coroa portuguesa, mas a implantação das capelas e matrizes das paróquias também devia obedecer às regras da Igreja (Fonseca, 2011). Nas zonas de mineração, a presença da Igreja Católica também servia como apoio na aplicação das leis definidas no território pela Coroa Portuguesa, na medida em que se defendia a partilha das riquezas por meio do pagamento do dízimo para alcançar a salvação eterna. Os princípios defendidos pela Igreja ajudavam a minimizar o alto índice de tentativas de contrabando relacionados à produção de riquezas, pois, além das sanções da lei, a população também temia as punições divinas, pregadas nos cultos.
Os paulistas também fundaram, em 1715, outra povoação, 12 quilômetros à jusante do povoado de Creoulos, onde os jesuítas construíram uma capela dedicada à Nossa Senhora do Livramento. As descobertas de minas favoreceram a ocupação desse trecho da chapada e, em 31 de outubro de 1721, foi emitida a Carta Régia que liberava a exploração dos minérios na região. Como forma de controlar desordens e evitar a evasão das riquezas minerais e dos impostos cobrados por Portugal sobre o ouro extraído, o então Vice-Rei do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses (4), encarregou o sertanista baiano Pedro Barbosa Leal de fundar vilas na região. Portanto, em 1724, a povoação junto à capela foi elevada à Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas (Pereira, 1940).
(4) Vasco Fernandes César de Meneses, 1º Conde de Sabugosa, foi Vice-Rei do Brasil de 1720 a 1735. Durante seu tempo no poder, cuidou da construção de fortes e reforçou o povoamento e controle das regiões onde havia ouro.
No mesmo ano de 1724, o Conde de Galveas (5) estabeleceu-se no sítio que corresponde à atual cidade de Minas do Rio de Contas. Nessa ocasião, por ordem do Arcebispo D. José Botelho de Matos, a freguesia de Santo Antônio de Mato Grosso mudou para a invocação do Santíssimo Sacramento de Minas do Rio das Contas, com ordens de se remover as alfaias e os bens da capela (Pereira, 1940, p. 44-45).
(5) O 4º Conde de Galveias, André de Melo e Castro, foi um oficial da Coroa Portuguesa e administrador colonial, reconhecido também por suas missões diplomáticas. Sua atuação foi marcada por compromissos políticos e administrativos de relevância no contexto do Brasil colonial. Segundo Mendes e Castro (2008), ele fez parte da elite de governadores gerais e vice-reis que atuaram no Brasil, exercendo influência significativa na administração e na formação sociopolítica do Império Português no ultramar, especialmente entre 1647 e 1750.
Devido à necessidade de controlar de forma mais efetiva e próxima as lavras de ouro aluvional, a administração colonial determinou a mudança do local da vila. Desse modo, em 1745, ocorreu a transferência da antiga vila para o novo sítio, com a denominação de Vila do Santíssimo Sacramento do Rio das Contas. Além disso, havia a precariedade da Vila Velha, visto que, por ser inicialmente povoada de maneira espontânea, estava muito próxima dos cursos d’água, o que deixava a população vulnerável nos períodos de cheias.
A conclusão foi de que o pleito dos mineiros era verdadeiro, pois o lugar da vila era distante do povoado e eles tinham dificuldades para deslocar-se, principalmente no inverno, além de estarem distantes dos oficiais para encaminhar as questões que lhes tocassem ou fossem relativas aos interesses da Fazenda Real (Vasconcelos, 2015, p.100).
Esse fato histórico de mudança do sítio urbano facilita a compreensão do atual contorno do território e das conexões entre Rio de Contas e as demais localidades. A distância da Vila Velha para a nova Vila de Minas do Rio de Contas corresponde a 11,9 km atualmente.
Ao analisar essa evolução em Rio de Contas, observa-se que, com a mudança do sítio urbano, novos edifícios foram construídos para suprir as necessidades da população local, dentre eles a igreja de Nossa Senhora Sant’Ana e a igreja do Santíssimo Sacramento, que atualmente é a matriz da cidade.
Em agosto de 1746, a nova vila já contava com cerca de 30 casas construídas, além de uma igreja, sob a invocação de Senhora Sant’Ana – erigida com esmolas dos devotos – e um hospital erguido, segundo o ouvidor da comarca da parte sul […] Ademais, os moradores já haviam organizado a irmandade de Senhora Sant’Ana e o Ouvidor requereu às autoridades régias aprovação dos seus estatutos, além da sanção à igreja e ao hospital edificados no novo sítio da vila de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas (Almeida, 2012, p.36).
Ao analisar a organização das cidades coloniais portuguesas, é fundamental destacar a distinção entre cidade alta e cidade baixa, conceitos urbanísticos aplicados nas ocupações coloniais. Essa divisão remete às teorias de ocupação urbana da época e às influências dos modelos cartesianos espanhóis, especialmente em regiões auríferas, que buscavam estabelecer uma estrutura urbana com uma lógica hierárquica.
Essas ideias ressaltam como o planejamento urbano português se diferenciava, adaptando-se ao relevo e organizando espaços administrativos e religiosos em pontos estratégicos da cidade. A cidade alta era frequentemente posicionada em áreas elevadas, oferecendo proteção e uma visibilidade ampla, enquanto a cidade baixa se desenvolvia nas regiões mais baixas, favorecendo o comércio e as interações cotidianas. Essa estruturação não apenas refletia a busca por controle territorial, mas também a intenção de consolidar a presença e a autoridade da Coroa Portuguesa nas novas terras.
O traçado urbano refletia a organização da cidade que ali estava sendo modelada, pois, nesse momento a cidade é planejada (6). Na alocação das principais edificações públicas e na escolha da localização da igreja matriz priorizava-se a presença de praças ou campos abertos para evidenciá-las, e como de costume, atendendo às Constituições do Arcebispado da Bahia, o templo católico era construído em pontos mais altos do terreno, de modo a dar visibilidade e demonstrar o poder que a Igreja tinha na configuração do espaço urbano e no processo de povoamento.
(6) Caberia salientar aqui as teorias contemporâneas sobre a ocupação urbana colonial portuguesa – a concepção de cidade baixa e cidade alta e a influência dos projetos cartesianos espanhóis em centros auríferos (parecer emitido para a Equipe Editorial Labor & Engenho).
A Coroa Portuguesa desenvolvia uma estratégia de implantação das cidades, em que assegurasse a existência de ruas principais e a separação de uma praça voltada a logística administrativa e outra voltada a questões religiosas com a alocação da igreja. Pessotti & Ribeiro (2011) ao examinar essa estratégia nas fundações urbanas brasileiras concluem que:
[…] o século XVIII e as múltiplas fundações urbanas brasileiras deste período caracterizam-se por uma crescente afirmação da regularidade e da ortogonalidade, pela assunção das praças como elementos geradores das malhas urbanas, e pela adoção de programas de arquitetura uniformes, que se viriam a refletir na prática e na teoria urbanística portuguesa setecentista. […] Dentre os fatores determinantes para a estruturação das cidades portuguesas, ocupam um papel fundamental a geografia e a topografia do terreno, o clima, a natureza do solo e os materiais disponíveis para construção” (p.151-152).
O ordenamento do traçado urbano está diretamente associado à intervenção do estado/governo na construção das cidades. Quando existe a ausência dessa participação, os aglomerados urbanos se desenvolvem sem simetria, imperando a demanda do investimento privado (Texeira, 1999). Dois modos eram aceitos na forma de se pensar uma cidade: o primeiro e mais simples é a implantação urbana vernacular, o mais alto, pensadas para proteção do território com a visualização ampla. Outro tipo de implantação urbana é o erudito, que é executado com o traçado regular com base nas idealizações de linhas retas e componentes geométricos, tendo a presença de responsáveis técnicos na elaboração desse modelo. Pessotti & Ribeiro (2011, p.153) abordam essa questão: qual segue o percurso natural da topografia, tendo como exemplo as cidades de influência portuguesa que são alocadas no ponto mais alto, pensadas para proteção do território com a visualização ampla. Outro tipo de implantação urbana é o erudito, que é executado com o traçado regular com base nas idealizações de linhas retas e componentes geométricos, tendo a presença de responsáveis técnicos na elaboração desse modelo. Pessotti & Ribeiro (2011, p.153) abordam essa questão:
Em todos os tempos, a cidade portuguesa é planeada e construída com o sítio, atendendo às suas características físicas e ambientais. Mesmo nos casos em que os planos tinham por base princípios geométricos, e em que as características físicas do território se podiam considerar menos relevantes, houve sempre a preocupação de adaptar o plano, e a sua geometria, às preexistências, fossem elas naturais ou construídas pelo homem. A cidade portuguesa caracteriza-se pela síntese destas duas componentes, harmonizando inteligentemente essas duas formas de construir a cidade, constituindo esta a principal característica do urbanismo português.
O mais comum era a fusão desses dois modelos, visto que, em algumas localidades, era difícil seguir o traçado ortogonal por conta da topografia acidentada. Além disso, nem sempre se tinha a presença de uma mão de obra qualificada suficiente para organização do espaço urbano e, muitas vezes, os técnicos estavam somente nas localidades mais ricas das colônias (Pessotti & Ribeiro, 2011). Na avaliação de Teixeira:
As cidades construídas pelos Portugueses fora da Europa são o resultado de uma variedade de influências e de modelos de referência, quer vernáculos quer eruditos, de diferentes momentos históricos. Cada cidade evidenciava uma síntese particular de elementos tradicionais e eruditos, dependendo do seu tempo de construção, da sua evolução, ou não, a partir de outros conjuntos urbanos pré-existentes, e das diferentes atitudes e estratégias políticas que haviam conduzido à sua fundação. Na maior parte dos casos, as estruturas urbanas portuguesas construídas no contexto da expansão ultramarina não correspondem a tipos puros de traçados, surgindo-nos padrões urbanos de origem vernácula ou medieval sintetizados com ideias renascentistas” (1999, p.215-216).
Na historiografia da cidade pesquisada, tem-se como prova a formação de um povoado que logo passou por um processo de mudança de sítio urbano, e esse novo sítio, objeto do presente estudo, teve, na prática, toda influência de um governo que se preocupou com a organização da cidade. Ao estudar a formação do traçado urbano no século XVIII, Pessotti & Ribeiro (2011, p.162) sinalizam:
No século XVIII foram construídas no Brasil muitas vilas e cidades com planos absolutamente regulares e geométricos, a maior parte das vezes ortogonais, onde se expressam os grandes temas do urbanismo clássico. Esses núcleos urbanos eram planejados racionalmente, com uma estrutura global, e a praça assumia o papel de elemento central da malha urbana. A beleza da cidade estava associada à regularidade do traçado e à adoção de modelos arquitetônicos uniformes, aos quais deviam obedecer a todas as construções de uma rua ou de uma praça, ou mesmo de todo núcleo urbano.
A caracterização do espaço urbano feita pelo parecer do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural: cidades históricas, conjuntos urbanísticos e arquitetônicos, descreve bem esse território de análise e o seu sítio urbano tombado (ver Figuras 2, 3, 4 e 5):
A cidade de Minas do Rio de Contas, situada na margem esquerda do rio Brumado, outrora rio de Contas Pequeno, e cortada por dois pequenos riachos, teve origem pela mineração. Consta apenas de umas seis ruas, duas praças, duas igrejas, uma Câmara e Cadeia típica do século XVIII, três ou quatro casarões e casas de “porta e janelas” (Reis Filho & Finger, 2016, p.89).
Figura 2. Fotografia da Praça Senador Tanajura : Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento : Rio de Contas, BA (s./d.). Fonte: Biblioteca do IBGE online. Acesso em 14 nov. 2022.
Figuras 3, 4 e 5. Conjunto de moradias pertencentes ao sítio urbano tombado em Rio de Contas – BA, 2022. Fotos: Letícia Coêlho de Oliveira. “Nessa escala, nota-se uma conformação típica do período colonial em que as ruas, os quarteirões e os lotes são definidos a partir da marcação das praças principais” (Oliveira, 2023, p.143).
No período colonial, a criação das estradas reais, que tinham por objetivo ligar a Bahia com Goiás, foi determinante para o povoamento e a constituição dos núcleos urbanos da região em estudo, como por exemplo as freguesias de Jacobina e de Rio de Contas. As delimitações das comarcas de Jacobina e Rio de Contas estavam vinculadas aos cursos dos rios e às estradas reais por onde era feito o transporte das mercadorias produzidas na região. O peso econômico e político das comarcas fazia com que elas cumprissem um papel importante dentro das estratégias de controle e ampliação dos territórios da coroa portuguesa. De acordo com Vasconcelos, nas comarcas:
Havia uma estrutura administrativa específica, cujos ocupantes possuíam autoridade e poder, independente do governo geral, inclusive podendo comunicar-se diretamente com o rei e seus representantes no Conselho Ultramarino. Essa característica da administração para as minas teve como finalidade precípua garantir a política do fisco, fórmula engenhosa da Coroa Portuguesa, que, diante da itinerante atividade mineradora, delegou a particulares a exploração, juntamente com os investimentos em material e mão de obra escrava, lucrando com as sobretaxas cobradas por todas as atividades e produtos” (2015, p.32).
A Figura 6 destaca o provável traçado da estrada real que percorria o Rio Paraguaçu e seus afluentes, demonstrando a relação histórica entre as estradas e os rios, que viabilizou o desenvolvimento de Jacobina e Rio de Contas. O caminho conecta territórios que na contemporaneidade são cidades que fazem parte do conjunto da Chapada Diamantina-BA. A linha vermelha apresenta a rota que se inicia no município de Jacobina, em sequência Morro do Chapéu, depois Lençóis, Andaraí (em seguida Iguatú distrito deste município), Santa Isabel do Paraguasu, que na atualidade corresponde a Mucugê, até, enfim, chegar a Rio de Contas.
Figura 6. Província da Bahia e o curso da Estrada do Rio Paraguassú, sem data. Fontes: MAPA da Província da Bahia para indicar o curso da estrada do Paraguassú.
As estradas foram fundamentais para a articulação das comarcas na Bahia e serviram para conectar o território colonial. Sendo assim, as principais rotas de passagem da coroa portuguesa facilitaram a conquista de novas áreas ainda não desbravadas e a fixação da população e dos primeiros cultivos de terras. Estudos realizados por Vasconcelos demonstram que:
A região aurífera da Bahia era ponto de convergência e entrecruzamento de caminhos já abertos e por abrir, que se articulavam com diversas regiões: do Norte (Piauí e Maranhão – este aberto em 1698, por D. João de Lencastro); Nordeste (Sergipe, que na época integrava a Capitania da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Ceará); Centro-Sul (Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso; Espírito Santo e Rio de Janeiro) (2015, p.79).
O desenvolvimento das Comarcas de Jacobina e Rio de Contas se dá de modo articulado como o restante do território do interior baiano que, a partir do início do século XVIII, tinha como função o abastecimento de suprimentos para as Minas Gerais. Mesmo com a descoberta do ouro na região que abrange os territórios de Jacobina e Rio de Contas, a administração da Coroa Portuguesa deixou suspensa a sua exploração até meados de 1720, para priorizar o abastecimento das Minas Gerais, onde a atividade mineradora já era importante. Havia ainda a necessidade de cuidar da defesa do território da Bahia, em razão das constantes invasões dos holandeses. Sobre isso, Vasconcelos pondera:
Mantém-se em Capistrano de Abreu a mesma justificativa para a proibição – os temores reais de invasão estrangeira. Se for verdade a ausência de explendor aurífero na Bahia, em Goiás ele teve existência efêmera. No século XVIII, a Bahia foi tanto agrícola e pastoril quanto mineira (2015, p.73).
No século XVIII e início do XIX, a Bahia era responsável pela produção de farinha, tabaco, cana de açúcar e criação de gado que supriam diretamente as regiões das Minas Gerais, mas também, o mercado externo (Lins & Santana, 2017). Quando nos atemos ao município de Rio de Contas, notamos que a agricultura foi a atividade pioneira que, mais tarde, como a descoberta do ouro, ganha ainda mais importância por abastecer o grande contingente populacional que ali se instalava em busca de riquezas minerais. Devido a sua localização estratégica, Rio de Contas servia como passagem, por ser o caminho mais curto, para Minas Gerais e também posto de fiscalização e tributação do ouro coletado. Nesse núcleo urbano, foram construídas edificações de apoio para o escoamento da produção e para os trabalhos administrativos da coroa portuguesa.
Nesse contexto, outra força de trabalho amplamente utilizada foi a mão-de-obra escravizada de origem africana. Com o pouco conhecimento da terra e a mistura da população que vinha de diferentes locais do continente africano, tornava-se mais fácil escravizá-los. Além disso, os escravizados tinham mais conhecimento técnico para lidar com a atividade do garimpo (Kok, 2004). O intenso uso da força de trabalho escravizada na mineração produzirá uma população composta, principalmente, de descendentes africanos não apenas em Rio de Contas, mas em toda a Chapada Diamantina. Essa realidade, justificará mais tarde, a presença de muitos quilombos nessa rede urbana, em decorrência das fugas empreendidas pelos escravizados.
Alguns sítios urbanos que compõem essa rede têm sua origem na fixação dos quilombos que ali se instalaram no auge do ciclo do ouro. A relação das comunidades quilombolas remanescentes com a terra existe até os dias de hoje na zona rural do município de Rio de Contas – BA, a exemplo dos distritos de Barra e Bananal. Nos territórios quilombolas, ainda são observadas as expressões culturais dos afrodescendentes, seja através da maneira de festejar, das comidas típicas ou, até mesmo, a técnica construtiva que é reproduzida na arquitetura (Lins & Santana, 2017).
O exame do processo de formação dos núcleos urbanos e das mudanças de status, de arraiais às cidades, evidencia a constituição de uma rede, permeada por disputas de poder político e econômico. Nesse sentido, logo se estabelecerá uma hierarquia entre os núcleos urbanos que compõem a rede da Chapada Diamantina. As atividades econômicas e o peso político conferiam um grau de importância diferenciado a essas localidades ao longo do tempo.
No primeiro núcleo de povoamento de Minas de Rio de Contas, conhecido como Vila Velha, o processo de ocupação se deu de maneira espontânea, para atender rapidamente a demanda mineradora. Essa fase também foi marcada pela presença de fazendas de abastecimento, sendo assim, o pequeno núcleo urbano funcionava como apoio para os moradores dos arredores.
O entendimento do processo de formação de Minas de Rio de Contas foi baseado na análise de documentos textuais e cartografias históricas, do período que abrange meados do século XVIII e início do século XIX. No território que corresponde ao termo original da Vila de Minas de Rio de Contas, formou-se uma rede urbana regional, com a descoberta de diamantes entre 1817 e 1818, atingindo seu auge de exploração em 1844. Como esclarecido no trecho a seguir, referente às anotações do diário de viagem de Theodoro Sampaio sobre o local de descoberta:
Foi nesse lugar onde provavelmente se assinalou a presença do diamante no cascalho aurífero, pela primeira vez, nestes sertões, pois que aí, nas cabeceiras do Rio de Contas, a formação do terreno é tão aurífera como diamantina. Todavia, é tradição mais corrente que a primeira descoberta do diamante na chapada só se deu pelos anos de 1817 ou 1818, quando o capitão-mor Felix Ribeiro de Novaes, fazendo pesquisas na serra do Gagau, logrou reunir algumas destas pedras preciosas, que apresentou ao coronel Joaquim Pereira de Castro, mas guardou disso segredo por ser então proibida a extração delas.” (Santana, 2002, p.258).
Em expedição à Província da Bahia, em meados de 1879, Theodoro Sampaio traçou um conjunto de mapas e desenhos que retratam como era conhecida a abrangência do território da Chapada Diamantina, no final do século XIX. Esse é um material fundamental para se compreender a articulação das redes urbanas existentes. Nos mapas por ele elaborados, estão demarcados os locais de lavras do ouro e do diamante e os caminhos que eram percorridos para exploração. Estão ainda situadas as fazendas que abasteciam a região, bem como destacadas as características do relevo e os respectivos nomes de picos.
Na Figura 7, apresentamos uma representação cartográfica elaborada por Theodoro Sampaio, em que se visualiza com maior clareza a distância entre a Vila Velha e Minas do Rio de Contas. O desenho também apresenta os rios e o relevo montanhoso, bem como as áreas de exploração aurífera e suas respectivas demarcações, sendo estes: o Pico de Mato Grosso, Minas de Rio de Contas e Vila Velha. Um paredão de montanhas está situado entre os territórios dos dois núcleos urbanos, que conecta o Pico das Almas com a Serra da Villa Velha.
Figura 7. Representação cartográfica da área em que se situam a Vila Velha e Minas de Rio de Contas, feita por Theodoro Sampaio em expedição à Bahia, em meados de 1879. Fonte: Arquivo do IGHB – BA.
3. As transformações no espaço urbano colonial baiano e em Minas de Rio de Contas
A evolução do núcleo urbano é marcada por inúmeras transformações para abrigar, a cada tempo, os interesses políticos e econômicos da Coroa Portuguesa. Assim, a forma como foi estruturado o novo núcleo urbano parece bastante similar à morfologia urbana de outras cidades luso-brasileiras do século XVIII, quando se observam características tais como a divisão dos lotes, o traçado das ruas e o arranjo da área central da cidade, com a presença da igreja matriz e de prédios públicos ali estrategicamente alocados. Pessotti e Ribeiro (2011, p. 76), em seu estudo sobre as cidades coloniais na Bahia, revelam como era realizado esse procedimento e os agentes que tornavam possível essa organização urbana:
O ouvidor convoca por editais os habitantes da povoação e de vilas vizinhas para, no dia exato, das sete para as oito horas da manhã, estar à frente das casas de sua aposentadoria para o acompanhamento no ato. Todos se encaminhavam ao lugar e sítio limpo, medido, demarcado para terreno da praça, com as ruas já traçadas, e preparado com arcos e enfeites festivos, onde o ouvidor levantava o pelourinho e aclamava vila.
Essa estratégia de ocupação urbana confirma a preocupação que a Coroa Portuguesa tinha em organizá-las para atender aos seus interesses, visando uma qualidade urbana que até hoje reflete nas características peculiares desses centros urbanos históricos.
A planta das praças, ruas e travessas e suas medidas eram “bem explicitadas, individuais com seus nomes” no livro de provimentos da correição. Indicavam-se arruador da agulha e ajudantes da corda, picadores de mato, todos moradores do local, para as medições. Estes deviam apresentar suas medidas, agulha e corda para o ministro verificar se estavam corretos e dentro do padrão (Pessotti & Ribeiro, 2011, p. 76).
Esse tipo de mudança tem impacto direto na conformação do traçado urbano ainda hoje conhecido nos sítios urbanos do Brasil Colônia e, em Rio de Contas, não é diferente. As decisões tomadas em âmbito geral da colônia tiveram reflexo nos novos espaços construídos, assim como influenciaram na mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro. O Marquês de Pombal (7) foi um importante agente modelador do espaço urbano do Brasil colonial, visto que suas ações impactaram de maneira geral no território. De acordo com a visão de Pombal para o Brasil, a autoridade real deveria ser ampliada pelo aumento de vilas no interior da colônia e pela sua integração num programa que procurasse aproveitar as potencialidades dos territórios (Delson, 1997, p. 49).
(7) Com o falecimento de Dom João V, em 1750, ascendeu ao trono português Dom José I que preferiu deixar o controle da política nas mãos de seu primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que governou, de fato, a nação e seu império ultramarino até 1777. O marquês assumiu as suas responsabilidades administrativas com aquele zelo reformista característicos dos defensores setecentistas do iluminismo (Delson, 1997, p.49).
[…] dentro dessas ações realizadas pelo Projeto Pombalino, foram criados núcleos urbanos, mais precisamente vilas, para fixar os habitantes ao solo. Portanto, a criação dessas vilas se deu dentro de um programa político amplo. Não foi um fato isolado e não se dirigiu unicamente ao Brasil” (Pessotti & Ribeiro, 2011, pp. 69-70).
Os propósitos de Pombal para o Brasil eram de consolidar a ocupação do território e unificá-lo, coincidindo com o período em que as minas de ouro começavam a declinar. Portanto, era necessário buscar outras maneiras de obtenção de riquezas. Durante o período pombalino, além da fundação de novas vilas, os administradores portugueses foram pressionados para “civilizarem” as localidades. As recomendações para remodelar os núcleos urbanos existentes compreendiam a adoção de um traçado urbano regular de acordo com o “modelo de costume”, a fim de que o lugar assumisse “as características de uma vila bem fundada” (Delson, 1997, p. 53).
A mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro e os eventos que ocorreram no período de intervenções pombalinas tiveram seus pontos positivos e negativos no território baiano e, mais especificamente, em Rio de Contas, que, na época, era classificada como vila. Uma perspectiva positiva foi a união de capitanias com a centralização de ordens e demandas pela capitania da Bahia.
Dentro desse projeto português, destaca-se a capitania da Bahia que, se de um lado, perdeu a sede de capital do Vice-Reino, por outro, teve incorporados ao seu território os das antigas capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. Incluía, ainda, parte do Norte da capitania do Espírito Santo e toda a de Sergipe. Criaram-se comarca e cargos de ouvidores, e a Bahia passou a ter, além da comarca do Sul, ou de Jacobina, e a do Norte ou de Sergipe, as de Ilhéus, Porto Seguro e Bahia propriamente dita, algumas das quais foram criadas na época (Pessotti & Ribeiro, 2011, p. 72).
A falta de mão de obra para as minas baianas geraria o perigo de atrair gente de Minas Gerais, desfalcando essa capitania, e de afastar os baianos da exploração. A migração de mão de obra representava uma desordem difícil de conter e dispensava a extração que poderia ser concentrada nas duas capitanias.
Os eventos econômicos e políticos que foram desencadeados no Brasil, no período colonial, impactaram diretamente a dinâmica das atividades em Minas de Rio de Contas, com repercussões na circulação de pessoas e de mercadorias, bem como nas relações externas. A exploração aurífera gerou intenso fluxo e atraiu um contingente populacional e isso exigiu a modificação da malha urbana para atender à demanda com alterações importantes no traçado urbano. Porém, com o reordenamento da produção mineradora pela descoberta de outras regiões auríferas e pelas novas relações com a Coroa Portuguesa, assiste-se ao deslocamento de um contingente de administradores para nova capital e muitos trabalhadores partem para Minas Gerais e Goiás atraídos pelo trabalho na exploração aurífera. Desse modo, os movimentos tanto de expansão quanto de retração da exploração mineradora produzem, igualmente, alterações não apenas no núcleo urbano de Minas de Rio de Contas, mas, também, nas relações que eram estabelecidas com outros núcleos urbanos.
4. A formação da rede urbana de Vila de Minas de Rio de Contas
Além de ser sede do poder administrativo e de fiscalização das riquezas minerais, a conexão com as fazendas e com as regiões circunvizinhas fez de Minas de Rio de Contas um núcleo urbano influente regionalmente. Em 1843, no auge da exploração de diamantes, a vila de Minas do Rio de Contas possuía um vasto termo que compreendia vários arraiais e povoados que se relacionavam por meio de caminhos e estradas. Ao longo do tempo, esses núcleos urbanos compreendidos no termo da vila de Minas do Rio de Contas se desenvolveram e se desmembraram, dando origem a outros municípios baianos.
O mapa da Figura 8 permite conhecer o termo da vila de Minas de Rio de Contas e o vasto território sob o seu controle e poder. Fica evidente que o processo de povoamento segue, sobretudo, o curso do Rio de Contas e demais afluentes de sua bacia hidrográfica, do litoral ao interior baiano.
Figura 8. Mapa da Vila de Minas de Rio de Contas, 1843. Fonte: Almeida (2012, p.34).
O território era tão extenso que 81 municípios conhecidos na atualidade pertenciam a Vila de Minas de Rio de Contas no século XIX. A área era tão vasta que abrangia o centro e o sudoeste baiano, até uma zona do litoral na cidade que hoje é conhecida como Itacaré. Com o passar dos anos, ocorreram desmembramentos do território datados entre o período de 1724 até 1962.
A importância de Villa de Minas de Rio de Contas foi fundamental para a formação da rede urbana nesse território com base na atividade mineradora e na produção agrícola. Em ampla perspectiva, a região tinha conexão com a passagem da estrada real, que foi fundamental no suporte do desenvolvimento regional: “Minas do Rio de Contas foi, pois, o eixo do desenvolvimento progressista e cultural de várias povoações que se formaram ao redor da Vila, e do progresso da mineração do ouro” (Pereira, 1940, p.26).
A Figura 9 mostra as conexões territoriais viabilizadas pela abertura da estrada real.
Legenda:
- Rio Paraguassú
- Santa Isabel
- Mucugê
- Serra do Sincorá
- Geraes (Quartzito)
- Lapa da Maxambomba
- Pico do Gavião
- Mundo Novo
Figura 9. Estrada real. De S. Isabel à estrada real de Geguy, 1879. Fonte: Mapa elaborado por Theodoro Sampaio em sua Expedição pela Bahia, em 1879. Arquivo do IGHB – BA.
Na Figura 10 pode-se observar a conexão de Jacobina com o território de Rio de Contas, que se dava pelo fluxo de recolhimento de impostos, transporte de ouro e alimentos produzidos na região, interligando a zona de exploração de Minas Gerais à capitania da Bahia. Além das conexões de caminhos que eram abertos próximo aos leitos dos rios, foi alocado no território a estrada real, que na atualidade corresponde a treze municípios que conectam Rio de Contas e Jacobina. Arraes (2017, p.23) descreve como eram obtidas as informações e planejado o processo da formação de redes no período colonial:
Reunidos na sede do governo da capitania, o capitão general Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho ouvia atentamente as novidades da Bahia e das áreas trilhadas pelo magistrado ao longo do caminho que receberia posteriormente o nome de Caminho Real do gado. As facilidades de comunicação e o tempo de viagem encurtado aparecem na narrativa do ouvidor. […] Registros de passagens, missões, capelas, freguesias, vilas e cidades compunham “nós” estruturadores do caminho, mas sua existência demandava o surgimento de outras vias e de novos assentamentos humanos, transformando esta linha terrestre em um dos fios de uma teia em fase de urdidura.
Foi com a abertura dessas passagens reais que a região de Rio de Contas se desenvolveu e se tornou não apenas local de acesso, mas também uma região que obtinha mecanismos de fiscalização da Coroa Portuguesa e estabelecia relações comerciais com outras regiões.
A Figura 10 revela a composição da paisagem, em que o cenário natural se mescla com as edificações construídas, permitindo visualizar o núcleo urbano da Villa Velha pelo ângulo do lado sul e como era o seu arranjo em 1879. Esse cenário passou por alterações ao longo do tempo, mas existem características de permanência, como a presença marcante da Cachoeira do Brumado e o seu conjunto de montanhas. Na atualidade, a estrada ecológica da BA-148 interliga os municípios de Rio de Contas – BA e Livramento de Nossa Senhora, que era o antigo vilarejo da Villa Velha, permitindo a vista da Cachoeira do Brumado.
Figura 10. Vila Velha Vista do Lado do Sul, Cachoeira do Brumado desenho elaborado por Theodoro Sampaio, 1879 na Expedição da Bahia. Fonte: Arquivo do IGHB – BA.
Algumas das edificações que compunham a Vila Velha são muito semelhantes àquelas construídas na Vila da Minas de Rio de Contas. É possível afirmar que a Coroa Portuguesa desenvolveu tipos arquitetônicos que orientaram a construção de edifícios ligados à administração. A Casa de Câmara e Cadeia chama atenção nessa imagem, na parte central do croqui, assim como a cachoeira do Rio Brumado, que, ainda hoje, fica em evidência na paisagem urbana e é conhecida como cachoeira do Véu de Noiva.
Na Figura 11 é apresentada a Planta do Distrito Diamantino de S. Isabel do Paraguassú, também elaborada por Theodoro Sampaio. Nesse ambiente estavam alocadas as lavras diamantinas e na planta são localizados os caminhos que eram seguidos para o acesso a essas vilas. Sampaio demarca os caminhos por meio da sinalização das cachoeiras e pontes construídas sobre os rios do território, cortando os afluentes do Rio Negro e o Rio Preto do Sincorá.
O acesso às minas era precário, na maioria dos casos, construído com materiais efêmeros, como pontes de madeira, que em geral, estavam localizadas em trechos que passavam nas cachoeiras. Sendo assim, com o passar dos séculos, essas evidências da conexão das minas de exploração aos vilarejos se perderam, o que justifica os poucos vestígios das passagens de acesso às áreas de mineração (Vasconcelos, 2015).
As fazendas se constituíram em importantes pontos de passagem ou de acesso às minas. Muitas delas foram tombadas, a exemplo da Fazenda das Laranjeiras e da Fazenda Gameleira. O conjunto de croquis e mapas de Theodoro Sampaio traz sinalizações importantes para se compreender o processo de formação da rede urbana de Villa de Minas de Rio de Contas ao demarcar os elementos territoriais que permitiram estabelecer conexões entre os lugares, a exemplo das estradas, fazendas, áreas de lavras, pontos de passagem, dentre outros.
Figura 11. Planta do Distrito Diamantino de S. Isabel do Paraguassú. Elaborado por Theodoro Sampaio, em sua expedição pela Bahia, em 1879. Minas da Siberia. Fonte: Arquivo do IGHB – BA.
5. Considerações Finais
A reorganização urbana que se seguiu à mudança do núcleo urbano foi resultado da aplicação do conhecimento técnico disponível na época, assim como das intenções e objetivos da Coroa Portuguesa. Os interesses socioeconômicos desempenharam um papel crucial nesse processo de (re)estruturação do espaço urbano regional. Era imprescindível criar condições favoráveis à extração de metais preciosos, à fundição de lingotes e ao escoamento dessas mercadorias, além de garantir a fiscalização da produção, visando à acumulação de riquezas tanto para a elite local quanto para os colonizadores.
Esse espaço urbano, no período colonial, era articulado com as demais localidades da sua rede urbana, como estratégia para viabilizar as demandas da economia aurífera, mas, com o passar dos anos, teve sua influência regional reduzida, pois ocorreu uma mudança na dinâmica econômica em razão da crise mineradora e, por consequência, teve uma perda do controle político do território.
Em razão da decadência da produção aurífera e, em seguida, da crise de alimentos, é o êxodo urbano que, contraditoriamente, irá contribuir com a preservação do patrimônio histórico desse município, vez que não houve, de imediato, um outro projeto de desenvolvimento econômico que requeresse a substituição das estruturas pretéritas. Além disso, com o tombamento do sítio urbano na década de 1980, com o desenvolvimento da consciência de preservação do patrimônio arquitetônico, com a manutenção pública de algumas edificações e com a fiscalização constante do patrimônio urbano tombado, evitou-se que edificações fossem descaracterizadas ou destruídas.
Na atualidade, a conexão entre os municípios que se desenvolveram no antigo termo da Vila de Minas de Rio de Contas se dá por meio do turismo, articulações da produção agrícola e compartilhamento de infraestrutura viária para o fluxo de produtos e pessoas, além, é claro, do compartilhamento de algumas manifestações da cultura popular.
6. Referências
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- Almeida, K. L. N. (2012). Alforrias em Rio de Contas–Bahia: século XIX. Salvador: Edufba.
- Arraes, D. E. A. (2017). Ecos de um suposto silêncio: paisagem e urbanização dos sertões do Norte, c. 1666-1820. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
- Bahia (2016). Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário do território da Chapada Diamantina. Salvador.
- Conceição, Hélida Santos (2020). A trajetória de Pedro Barbosa Leal e as redes de conquistas no sertão da capitania da Bahia, 1690-1730. Rio de Janeiro: Maracanan, n. 25, p. 74-102.
- Delson, R. M. (1997). Novas vilas para o Brasil-colônia. Planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília: Ed. ALVA-CIORD.
- Fonseca, C. D. (2011). Arraiais e vilas d’El Rei – espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
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- Kok, G. (2004). O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo: Hucitec.
- Lins, E., & Santana, M. (2017). Mestres e artífices-Bahia: Caderno de memórias. Salvador: Halley.
- Mendes, C. G., & Castro, J. H. F. de (2008). O Brasil no império ultramarino português e o estudo das trajetórias sociopolíticas dos governadores gerais e vice-reis do Brasil entre 1647-1750. In: Anais do II Colóquio do LAHES: micro história e os caminhos da história social.
- Oliveira, L. C. (2023). As redes urbanas e um olhar para a cidade de Rio das Contas – BA nos séculos XVIII e XIX. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Campinas, SP, Brasil.
- Pereira, G. de A. (1940). Minas do Rio das Contas. Bahia: s./e.
- Pessotti, L., & Ribeiro, N. P. (2011). A construção da cidade portuguesa na América. Rio de Janeiro: PoD.
- Reis, N. G., & Finger, A. E. (2016). Pareceres do conselho consultivo do patrimônio cultural: cidades históricas, conjuntos urbanísticos e arquitetônicos. Brasília: Iphan.
- Santana, J. C. B. (2002). O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina (Teodoro Sampaio). São Paulo: Companhia das Letras.
- Teixeira, M. C. (2012). A forma da cidade de origem portuguesa. São Paulo: Editora Unesp.
- Vasconcelos, A. L. (2015). As Vilas do Ouro: sociedade e trabalho na economia escravista mineradora (Bahia, Século XVIII). Vitória da Conquista: Edições UESB.