História das Fortalezas e Defensas de Salvador da Bahia

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Forte Santa Maria
O Forte de Santa Maria, com o Porto da Barra, ao fundo, tomados do Farol, em 1839.

Nada mais importante, na memória de Salvador, do que os edifícios históricos, incluindo seus fortes, fortalezas e defensas.

Entre eles, estão as fortificações, que se tornaram obrigatórias nas imagens dos cartões postais, nas peças da propaganda turística e em outros documentos sobre a cidade.

Segundo o militar e historiador inglês Charles Boxer, a presença de uma só fortaleza é item que justifica uma visita a qualquer cidade.

Salvador ainda pode exibir muitas delas, em estado razoável de conservação, capazes de evocar o passado e as memórias de sobressaltos, revoltas e invasões do nosso solo.

Embora pareça paradoxal, por terem como pano de fundo a violência dos combates, as fortificações exercem um grande apelo poético desde a Idade Média, e mesmo antes dela.

Cativam e fascinam o observador dos nossos tempos, independentemente do intenso cabedal histórico que acumulam e que, por si só, já encerraria enorme apelo.

O destaque das fortificações na paisagem da cidade certamente representa a imposição da necessidade tática e estratégica do seu posicionamento em local elevado, com visibilidade privilegiada para as áreas circunvizinhas.

Mas não se pode negar ao engenheiro militar que as projetava e construía a sensibilidade estética que assimilava da cultura do seu tempo e dos textos dos mais destacados teóricos da arquitetura do Renascimento e do Barroco.

Warhafftige Abbildung von Einnehmung der Salvador in der Baya des Todos los Santos, 1633
This handsome view depicts a Dutch fleet in the Baya de Todos los Sanctos attacking the town of San Salvador and the Portuguese merchant fleet in 1625. The buildings are clustered on the crest of the bay with four major forts protecting the harbor. A key below identifies 24 important sites. San Salvador was Brazil’s main sea port and a major center of the sugar industry and the slave trade. This view is from Van Meteren’s important History of the Netherlands.

Os tratados desses engenheiros estão eivados de citações dos mestres da arquitetura do passado, cujos ensinamentos contribuíram, sem sombra de dúvida, para a formação da sua sensibilidade criativa.

As fortificações abaluartadas não ficam atrás. Mesmo influenciadas pela racionalidade dos novos tempos, imprescindível para fazer frente ao grande poder destruidor das armas de fogo, deixam transparecer a coerência da resolução da função, que conduz quase sempre à qualidade da forma.

Nesse domínio, onde não se podia fazer concessão ao supérfluo, o resultado costuma ser uma boa arquitetura, de muita pureza de formas, com arrumação harmônica dos volumes e integração perfeita com a morfologia do terreno.

O despojamento formal é inerente à função, não havendo o apelo a recursos decorativos, que poderiam tornar a obra fortificada mais frágil do ponto de vista tático.

Quando existiam, as concessões decorativas eram mais que limitadas: um bocel ou cordão que separava o parapeito da saia (parte inclinada da muralha, abaixo do parapeito), mas que tinha certa função prática; uma portada, com ornamentação inspirada nas antigas ordens greco-romanas, principalmente a toscana (variante da dórica); alguma moldura nas guaritas e basta.

Cabe caracterizar dois momentos da poética das fortificações “modernas”:

  • No primeiro, a construção era confiada aos arquitetos e artistas do Renascimento, que procuravam dar o melhor de si para vender os seus modelos aos eventuais contratantes, principalmente no século XVI.
  • No segundo momento, o encargo de fortificador passa às mãos dos engenheiros militares e a tendência à sobriedade vai se intensificando. Não que os engenheiros tenham se apartado dos cânones da beleza, mas a necessidade premente de contrabalançar o poder destruidor das armas de guerra apontava, cada vez mais, para o pragmatismo das soluções.

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Fortalezas e Defensas de Salvador BA

Uma História de Três Séculos

Salvador nasceu como cidade-forte ou, pelo menos, isso era o que pretendia D. João III, de Portugal, e, enquanto foi capital ou Cabeça do Brasil, houve preocupação constante em defendê-la.

Por esse motivo, o primeiro Governador-geral da Colônia, Tomé de Sousa, encarregado pelo rei de instalar a capital, trouxe consigo, em 1549, o mestre Luís Dias, experto em fortificações.

Dias aplicou no terreno as “traças” (desenhos, projetos) vindas do Reino, elevando muros altos de taipa para defender a nascente capital da América portuguesa.

A partir de então, Salvador teria se tornado uma cidade forte, tal como estabelecia D. João III no Regimento confiado a Tomé de Souza?

É necessário reconhecer que, ao contrário do que apregoaram alguns historiadores ufanistas, Salvador permaneceu muito vulnerável
aos ataques externos de exércitos modernos e bem organizados da época, dotados de artilharia, a qual já detinha razoável eficiência a partir do século XVII.

O crescimento vertiginoso e desordenado da cidade, especialmente a partir do século XVII, dificultava a edificação de um perímetro fortificado seguro, dentro dos bons postulados da arte da defesa daqueles tempos.

No caso da Baía de Todos os Santos, os problemas multiplicavam-se, porque, sendo uma das maiores baías do planeta, a abertura da sua barra não permitia cercear o acesso de naus inimigas, que poderiam passar ao largo, longe do alcance dos canhões, sem serem hostilizadas pela artilharia.

Além dessas dificuldades, havia limitações financeiras: Portugal não era um país rico e a Fazenda Real abria seus cofres muito parcimoniosamente para investimentos na América, em vista dos problemas que tinha com as possessões e colônias da África e da Ásia e do endividamento com países europeus.

O desenvolvimento das nossas fortificações ficava assim na dependência, principalmente, dos impostos sobre o vinho, o açúcar, o óleo das baleias ou outros produtos de comércio.

O ingresso desses recursos, porém, não era compatível com as necessidades de uma fortificação em larga escala, como a defesa da capital exigia.

A preocupação com a vulnerabilidade de Salvador não é uma simples impressão que se pode inferir da leitura de documentos antigos.

Ela é explicitada, com toda a clareza, sobretudo nos escritos dos especialistas em assuntos militares, em particular os engenheiros que trabalharam ou viveram na cidade.

Diogo de Campos Moreno, por exemplo, Sargento-mor e Capitão da costa do Brasil no tempo do Governador-geral Diogo Botelho, destacou em relatório de 1609 a fragilidade das defesas da cidade.

Entretanto, havia quem considerasse as nossas defesas “suficientes”, como é o caso de D. Francisco de Souza, Governador-geral da grande colônia portuguesa de alémmar entre 1591 e 1602. Dessa bisonha opinião só se pode fazer duas interpretações:

D. Francisco não entendia do assunto, o que era bem provável, ou procurava justificar o fato de não ter cuidado melhor da situação quando esteve na condição de fazê-lo.

Baya de Todos os Sanctos, de Laet, Joannes
This rare map of Salvador and Baia de Todos os Santos (Bay of Saints) is a depiction of the Dutch attack and capture of the city of Salvador in May 1624. Salvador, then the capital of Brazil, was a strategic port under Portuguese control. The Dutch, determined to seize control of Brazil, formed the West India Company in 1621 and sent a large expedition to Brazil. On May 8, 1624, the Dutch fleet under the command of Admiral Jacob Willekens and Vice Admiral Pieter Heyn arrived in Salvador and attacked the city. The Dutch succeeded in capturing the city, although the Portuguese regained control less than a year later. This map depicts the city of Salvador and its fortifications, with the Dutch ships advancing on the city. The remainder of the coastline is sparsely engraved with a few small towns, churches, and settlements. The map is oriented with north to the left and features a handsome strapwork cartouche that incorporates the distance scale. Published in de Laet’s account of the history of the Dutch West India Company from its beginnings to 1636.

O Livro que dá razão do Estado do Brasil – 1612, atribuído a Diogo de Campos Moreno, é bastante incisivo quando comenta o estado das defesas da Cabeça do Brasil: “convém sustentar-se este presídio enquanto a fortificação da cidadela está tão atrasada e a cidade é uma aldeia aberta, exposta a todos os perigos enquanto aquela parte se não fortificar […]”
.
Não faltaram outras admoestações às cortes de Portugal e Espanha a respeito da situação precária das nossas defesas.

Nos anos que antecederam à invasão holandesa de 1624, diante dos rumores de preparativos dos batavos, houve troca intensa de correspondência sobre o tema.

Mas, nessa altura, ainda se discutia a necessidade de fazer o Forte da Laje, controvertida defesa do porto de Salvador, que muitos historiadores confundiram com o Forte de São Marcelo.
.
Mas o que Diogo Botelho queria era muito mais do que isso: clamava por uma cidadela, pela dificuldade de proteger bem o inteiro perímetro da capital.

Por não ter sido concluída a fortificação de Salvador, os holandeses nela entraram com a maior facilidade, em 1624.

Ao se assenhorear da praça, trataram de fortificá-la, porque, como bons especialistas e pertencentes a uma das escolas européias mais respeitadas da fortificação, consideravam a cidade desprotegida para lhes garantir a defesa.

A primeira medida que os invasores adotaram foi a limpeza dos campos de tiro em torno da cidade.

Derrubaram não só o mato, mas também alguns imóveis que criavam obstáculo à visibilidade dos atiradores.

Fizeram posições defensivas de terra na ermida de São Pedro (vizinha do atual Forte de São Pedro) e no atual outeiro do Barbalho; organizaram também defesas no Santo Antônio Além-do-Carmo; barraram o rio das Tripas, criando o Dique pequeno, que veio a ser chamado, posteriormente, Dique dos holandeses, ao longo da atual Baixa dos Sapateiros, e outras proteções mais.

Esses trabalhos de fortificação são reconhecidos em documentos oficiais portugueses e pelos cronistas da invasão e da retomada
aos holandeses da Cidade da Bahia, entre eles, Johann Aldenburgk, médico da esquadra holandesa, e os espanhóis Tamayo de Vargas e Valencia y Guzmán.

No período que sucedeu à invasão e à retomada de Salvador, estava clara a importância de fortificar a cidade e o Morro de São Paulo, chave da defesa das Três Vilas, antiga designação nos documentos reais para Cairu, Boipeba e Camamu, consideradas, textualmente,
como os celeiros que abasteciam Salvador.

A demonstração cabal da fragilidade do nosso sistema defensivo, dada pela tomada da capital pelos batavos, fez com que, mesmo envolvido com as guerras da Restauração, o governo português decidisse melhorá-lo, investindo algum recurso da Fazenda Real, mas,
principalmente, criando mais impostos sobre mercadorias.

Na cidade, algumas defesas foram restauradas e/ ou receberam melhorias, em especial na administração de D. Diogo Luís de Oliveira (1627-1635), pois o inimigo holandês continuava ameaçando invadi-la.

Ressabiados com a tentativa de conquista promovida por Nassau em 1638, e mesmo após Portugal readquirir a autonomia em relação à Espanha (1640), os lusitanos empreenderam algumas obras defensivas, sobretudo na efêmera, porém esclarecida, administração do Vice-rei D. Jorge de Mascarenhas, primeiro Marquês de Montalvão (1640-1641).

S. Salvador, Leti, Gregorio
This nicely engraved view shows the Dutch fleet in the Baya de Todos los Sanctos attacking the town of San Salvador and the Portuguese merchant fleet in 1624. The buildings are clustered on a crest of the bay.

Essas obras, contudo, concentraram-se no reforço de algumas posições existentes e na restauração de antigas defesas, principalmente as que foram deixadas pelos holandeses, em 1625.

Com o Governador Antônio Teles da Silva (1642-1647), as obras de Montalvão tiveram prosseguimento e iniciou-se a construção do perímetro alargado de novas trincheiras.

Urbs Salvador, Montanus, Arnoldus
Montanus’ work was perhaps the greatest illustrated book on the New World produced in the seventeenth century. It contained over one hundred beautifully engraved plates, views, and maps of North and South America. The plates vividly depict forts, festivals, occupations, Dutch fleets, battles, religious rites, and customs of the native inhabitants. This important work was translated into German by Olivier Dapper, and into English by John Ogilby. Several of the plates were later acquired by Pierre Vander Aa.

Não é necessário dizer que a Coroa de Portugal pouco investiu nesse empreendimento, levado adiante com recursos provenientes de impostos e da contribuição voluntária dos habitantes da cidade e do Recôncavo.

Pode-se ter uma idéia desse novo perímetro fortificado por meio do desenho da planta de Salvador, elaborado muito mais tarde, em 1714, pelo Engenheiro Militar francês Amédée Frézier.

Na metade do século XVII, teve início a construção do Forte de Nossa Senhora do Pópulo e São Marcelo, de desenho influenciado pelo do Forte do Bugio, na barra do rio Tejo. A obra, destinada a evitar o desembarque no porto da cidade, arrastou-se por longos anos, até o século XVIII.

Todavia, um relatório anônimo, datando provavelmente de 1671 ou 1672, não continha observações muito lisonjeiras em relação à maioria das fortalezas referidas.

No fim do século XVII, por determinação da Corte, chegou a Salvador, vindo de Pernambuco, o Capitão Engenheiro João Coutinho. Só então tentou-se fazer um plano, em larga escala, para defender a cidade que o capitão encontrou desprotegida.

O projeto de Coutinho jamais foi executado, salvo algumas partes. Uma declaração a esse respeito está contida no Discurso de Bernardo Vieira Ravasco (irmão do Padre Antônio Vieira), que foi Secretário de Estado e da Guerra por muitos anos: “Morreu o Engenheiro [João Coutinho], depois o Governador Mathias da Cunha, tudo ficou da mesma maneira, até hoje, e só cresceram as ruínas e nelas os arvoredos […]”.

Um dos grandes responsáveis pelas dificuldades na defesa da Cabeça do Brasil era o crescimento desordenado da cidade.
É verdade que existiam Ordenanças e Regimentos que deveriam disciplinar a ocupação do solo, mas viviase a milhares de quilômetros
de distância do Reino e um forte atavismo incentivava o não cumprimento de normas.

Construções abusivas tomavam, pois, conta do espaço urbano, com a “vista grossa” de alguns administradores e mesmo com a autorização da Câmara.

Esta era benevolente com os amigos e protegidos, autorizando o que, regimentalmente, não poderia autorizar, isto é, a construção “no salgado”, como eram chamados os terrenos de marinha, pertencentes exclusivamente ao Rei, a quem caberia dar tal permissão.

Some-se a isso a invasão e uso das áreas de trincheiras e redutos como quintais, a remoção do saibro das fortificações para a construção de casas particulares, a utilização dos fossos das fortalezas para a pastagem do gado, a abertura de acessos pelas escarpas e contraescarpas e obras similares.

A Cidade Baixa foi a que mais sofreu com o crescimento desordenado.

Atendendo a interesses principalmente de comerciantes, que visavam tirar partido da exígua faixa de terra entre a escarpa e o mar, o pé da montanha foi cortado para a implantação de imóveis.

Em decorrência, problemas com a estabilidade da encosta e a invasão do mar com construções, tolhendo o campo de tiro dos poucos fortins, estâncias e plataformas existentes, inviabilizaram a defesa do porto.

O relatório do Capitão Engenheiro João Coutinho, de 1685, e os documentos de engenheiros militares que o sucederam, no início do século XVIII, delinearam muito bem esse quadro, que parece ter continuado ao longo do século.

Chegado esse século, as ameaças de invasões continuavam e a Coroa de Portugal resolveu, mais uma vez, fazer um sistema fortificado digno para a capital portuguesa das Américas.

Logo no início, em 1709, o Tenente de Mestre-de-campo Miguel Pereira da Costa foi mandado para a Bahia como engenheiro fixo.

Por meio de correspondência, ele manifestou seu desespero por encontrar uma cidade completamente despreparada e sem defesas para fazer face a eventual inimigo.

A certo Padre Mestre, possivelmente jesuíta e seu antigo professor, dizia em carta de 18 de junho de 1710: “[…] está tudo aqui no maior desamparo, a praça aberta e exposta a qualquer invasão […]”.

Em relatório preliminar, comentou: “[…] estas são as obras que nesta praça se acham para a sua defesa e todas em miserável estado […]”.

O reconhecimento, por parte da Coroa Portuguesa, da fragilidade das defesas de importantes cidades brasileiras, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, fez com que o monarca de Portugal desse a patente de brigadeiro a João Massé, para que viesse ao Brasil.

Sua missão era melhorar as defesas dessas praças e de outras vizinhas.

Em Salvador, Massé contou com a colaboração de engenheiros locais que já conheciam a realidade do terreno, como o Mestre-e-campo Miguel Pereira da Costa e o Capitão Gaspar de Abreu, lente da Aula de Arquitetura Militar da Bahia.

Como sempre, do majestoso projeto de fortificações proposto para Salvador, cujos desenhos originais foram perdidos, mas dos quais restaram cópias, pouca coisa foi realmente executada, ficando a defesa desse presídio para depois.

O mesmo aconteceu em outras cidades.

Plan de la Ville de Salvador, Capitale du Bresil, Bellin, Jacques Nicolas
Handsome bird’s-eye plan of the fortified town of St. Salvador, the capital of colonial Brazil. Keys at sides list 48 important sites. Above the plan is a panoramic view of the city and fort on a hill overlooking the bay of All Saints.

A mudança da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, liquidou com a possibilidade de Salvador vir a ser fortificada adequadamente. Transcorria o período pombalino e foi o próprio Marquês quem relatou a situação das nossas defesas em carta ao Vicerei do Brasil, datada de 3 de agosto de 1776, Sobre o Verossímil Projeto de Invasão, Bombardeamento e Contribuição, ou Saque, da Bahia de Todos os Santos.

La Ciudade Salvador Capital del Brasil, Anon
Salvador, formerly the capital of Brazil, was a strategic port under Portuguese control. This fine copper engraving shows the walled city of Salvador with ships and boats filling the harbor in the foreground. A lettered key at bottom identifies numerous locations. This anonymous Spanish view is a larger copy of Arnoldus Montanus’ view of the city, published in 1671.

Dizia Sua Excelência, nesse documento, que o Marquês de Grimaldi tinha aconselhado ao rei da Espanha não atacar a parte sul do Brasil, que estava mais guarnecida e era mais distante: “que deveria mandar atacar em outros lugares mais cômodos, e de seguro golpe; ou aos Portos, em que estamos mais desprevenidos; os quais são, Bahia e Pernambuco”.

Em suma, o governo português não ignorava a debilidade da nossa situação defensiva.

Os Primeiros Muros

Os documentos da época informam um detalhe interessante sobre as defesas de Salvador nos primeiros tempos. Elas foram levantadas muito mais por receio dos nativos do que dos invasores estrangeiros.

Essa maneira de ver as coisas só mudaria com o passar do tempo.

Levando em conta essa informação, pode-se afirmar que, nos primórdios da sua fundação, a cidade desfrutava de razoável condição de defesa.

Mesmo que hábeis arqueiros, conhecedores do terreno e homens de invulgar coragem, os nativos não podiam opor ao colonizador nada além da ação das suas armas rudimentares.

Portanto, para o enfrentamento dessa ameaça, o precário muro de taipa de pilão, com sabor de defesa medieval, respondia adequadamente à função.

Erguido ainda sob a orientação do mestre Luís Dias, o muro seguia traçados gerais vindos do Reino, atribuídos ao Arquiteto e Engenheiro Militar Miguel de Arruda.

Acontece que a cidade cresceu de maneira acelerada, como esclarecem os cronistas, entre eles o colonizador português Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, ou Notícia do Brasil.

Assim, à medida que a cobiça de outros povos europeus fazia da costa brasileira palco das incursões de corsários, aventureiros, contrabandistas e, mais tarde, de empresas apoiadas por nações, Salvador, a Cabeça do Brasil, tornava-se alvo de crescente interesse.

Documentos quinhentistas, como a correspondência do próprio Luís Dias e as Provisões para pagamento de empreiteiros, falam do muro de taipa preliminar, que, segundo o historiador e folclorista baiano Edison Carneiro (1912-1972), tinha de 16 a 18 palmos (3,52 m a 3,96 m) de altura.

Quando reconstruído, após o desmoronamento acontecido com as invernadas de 1551, passou a 11 palmos (2,42 m).

Quanto a sua abrangência e por onde passava exatamente, só existem conjecturas, já que não foram encontrados testemunhos além de um trecho de muralha nas portas do Carmo.

Observa-se, porém, que, mesmo com a redução da altura e a aplicação de reboco de proteção, essas defesas tiveram vida muita curta, como atesta Gabriel Soares de Sousa. Também duraram pouco as defesas que foram reconstruídas, com a mesma técnica, pelo Governador-geral D. Francisco de Souza, gestor da colônia entre 1591 e 1602.

Os Redutos Construídos por Luís Dias

Os muros de taipa que cercavam a primitiva Cabeça do Brasil não eram suficientes para a defesa da cidade, particularmente por causa da altitude em que ela se encontrava (cerca de 70 m acima do nível do mar).

Essa situação, de certo modo, dificultava o acesso ao inimigo para tomar a cidade a partir do porto, obrigando-o a subir íngremes ladeiras, mas não ajudava a impedir os desembarques, porque a artilharia de então, trabalhando naquela altura, tinha um campo escuro
acentuado, não podendo atirar para baixo.

Em resposta ao problema, Luís Dias tratou de criar algumas plataformas, estâncias ou mesmo redutos na zona da Ribeira (antiga parte baixa da cidade, à beira-mar).

Com esses elementos, referidos em missiva pelo próprio mestre, pretendia-se proteger o porto, dificultando o desembarque.

A localização desses primeiros propugnáculos de Salvador ainda é tema de muita controvérsia, embora garimpado por figuras ilustres
da historiografia baiana.

Em geral, parte-se do pressuposto de que seis defesas apoiavam o muro de taipa de pilão que cercava a nova cidade no tempo da sua fundação.

Esse número está baseado, em parte, nas referências de Gabriel Soares de Sousa, que julgamos bastante fidedignas.

Ele não indica, porém, o nome de todas as posições dotadas de artilharia.

As duas fortificações do mar, que Luís Dias cita textualmente em uma das suas cartas, foram construídas na praia, para a defesa do porto.

O autor relata que a primeira delas foi feita com terra e “paus de mangue que se criam n’água e são como ferro”, que ele julgava poder durar uns vinte anos, deixando ao arbítrio real a decisão de construí-las em pedra e cal.

Existem discordâncias entre os historiadores quanto à localização exata dessas defesas desaparecidas.

Porém, segundo quase todos os estudiosos que leram o documento de Dias, uma delas situava-se na Ribeira do Góes, em cima de um rochedo.

Sobre a outra defesa, sabe-se que recebeu a invocação de Santa Cruz e que deveria ser menor, pelo armamento que possuía.

  • O Engenheiro e Geógrafo Teodoro Sampaio (1855-1937), estudioso da Cidade do Salvador, aponta quatro baluartes voltados para a terra.
  • O baluarte de São Tomé, que fazia a proteção da porta de Santa Luzia e do caminho da Vila Velha do Pereira, situado no local da atual Praça Castro Alves.
  • Um baluarte “em agudo com flancos e faces avançadas a nordeste”, junto a certa casa nobre, com porta de entrada encimada por brasões de armas (possivelmente o Solar dos Sete Candeeiros, nas vizinhanças do atual prédio do Instituto dos Arquitetos, na Ladeira da Praça).
  • Um baluarte no fim do beco das Vassouras, conhecido depois como beco do Mocotó.
  • Finalmente, um baluarte a cavaleiro da depressão onde se encontra a igreja da Barroquinha. Essa posição deve corresponder ao local do antigo cine-teatro Guarani, depois batizado de Glauber Rocha, na atual praça Castro Alves.

Como se pode imaginar, tal localização dos baluartes estabelece outra enorme querela. Volta-se, então, a Gabriel Soares de Sousa, que afirma, em 1585, sobre os primitivos muros: “agora não há memória aonde eles estiveram”; fica, pois, muito difícil ter certeza da localização de alguma coisa.

Acrescente-se a isso que as plantas de João Teixeira Albernaz I, que integram o Livro que dá razão do Estado do Brasil, fundamento básico das argumentações dos historiadores, não são cadastros, mas projetos para a cidadela que pedia Diogo Botelho.

Esses projetos podem ter sido feitos de outra maneira, executados parcialmente ou nem mesmo realizados.

Assim, também não podemos utilizar essas plantas para argumentar que as primeiras portas de Santa Catarina eram localizadas no lado norte da Praça Tomé de Sousa (Municipal), no início da atual Rua da Misericórdia.

No entanto, cabe admitir a situação proposta para esse primitivo acesso como uma possibilidade, porque os argumentos apresentados, mesmo que não sejam convincentes, permitem diversas interpretações.

As Primitivas Torres

Nada mais resta das torres primitivas de defesa da antiga capital – na sua maioria, edifícios levantados de taipa de pilão que o tempo se encarregou de levar para o domínio do esquecimento.

Isso aconteceu não só porque a taipa pode ser uma técnica de construção efêmera, quando não executada com determinados cuidados, como também por terem essas fortificações se tornado obsoletas no roteiro da evolução da arte das defesas.

Afortunadamente, restaram testemunhos da história escrita e elementos iconográficos que admitem resgatar, com certo fundamento, alguma coisa da memória desse momento primitivo dos nossos sistemas fortificados.

Tudo indica que a torre, de fundamentos medievais, teve um papel importante no desenho da fortificação de quase todo o século XVI, na América portuguesa, tanto no regime das capitanias hereditárias quanto durante o primeiro momento em que se decidiu criar a Cidade do Salvador.

Inicialmente, conviria destacar que esse conceito da construção de nossas torres era posto de lado por alguns historiadores, pretendendo que o sentido do termo torre estivesse ligado ao conceito simbólico de fortificação, de maneira geral. A causa desse equívoco é não terem mergulhado mais fundo na investigação, combinando as informações históricas contidas nos textos e o estado das artes da defesa em Portugal, com o apoio de observações de campo possibilitadas por prospecções arqueológicas.

O argumento primeiro que se pode levantar sobre a existência de torres é o de que, no século XVI, Portugal ainda conservava hábitos e tradições medievais.

Naquele tempo, a torre era o elemento central de todo sistema fortificado e, até mesmo, constituía-se em edifício isolado e solitário, quando o senhor das terras não era abastado o suficiente para cercá-la com um perímetro de muralhas exteriores.

Ora, esse sistema era o que bastava para dar salvaguarda aos primeiros colonizadores contra as armas rudimentares dos habitantes originais da nossa terra.

Depois, a palavra torre é citada nos documentos antigos e ordenanças reais e não se vê razão para supor que o termo estivesse sendo utilizado com um sentido figurado, principalmente depois que se encontraram iconografias e vestígios da Torre de São Tiago de Água de Meninos.

É bem verdade que os artistas que elaboravam as gravuras assumiam a licença poética de colocar torres por toda parte.

Quando o desenho tinha, entretanto, finalidade documental e não de ilustração, a representação das fortalezas aproximava-se mais do real.

Assim, não é improvável que as primeiras torres de defesa, de base quadrada, fossem as fortificações utilizadas pelos donatários nas suas capitanias.

Em nosso socorro, vêm os historiadores Francisco Varnhagen e Capistrano de Abreu, com transcrição de documento da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que explica a feição da Vila Velha de Francisco Pereira Coutinho, donatário da capitania da Bahia: “Pôs a vila no melhor assento que achou, em que tem feito casas para cem moradores e tranqueiras em redor e uma torre já no primeiro sobrado”.

A Torre de Pereira Coutinho em Vila Velha (onde se encontra a igreja de Santo Antônio) deve ter sido, em tudo, semelhante à do donatário Duarte Coelho, em Pernambuco, que era, segundo Varnhagen, “uma espécie de castelo quadrado, à maneira das torres de menagem dos solares da idade média”.

Não é difícil enxergar, no desenho em planta do primitivo Forte de Santo Alberto, no canto esquerdo inferior da iconografia que nos legou Albernaz, o partido dessas torres quadradas, cuja entrada era flanqueada por duas torres menores de canto.

Observe-se, por exemplo, que a de Pereira Coutinho, na Vila Velha, já necessitava de reparos quando da fundação da cidade, como indica uma Provisão da época para a reconstrução de 31 braças (68,2 m) da sua taipa pelo taipeiro Balthazar Fernandes.

Uma variante das antigas torres de base retangular era o emprego do partido circular, mas com entrada também flanqueada por torres menores. Podemos ver, no canto esquerdo superior do desenho de Albernaz (pág. 44), um exemplo dessa versão. Como atestam os registros do Engenheiro Militar José Antônio Caldas e do cronista Luís dos Santos Vilhena, essa torre sobreviveu até o fim do século XVIII, incorporada ao terrapleno adicional projetado pelo Mestre-de-campo Miguel Pereira da Costa, no primeiro quartel do mesmo século.

Era a Torre de São Tiago de Água de Meninos, depois Forte de Santo Alberto (quando desapareceu o primitivo), vulgarmente conhecido como Fortim da Lagartixa.

Nem bem se tinham passado cinqüenta anos da fundação da capital, os colonizadores portugueses já sentiam que esses sistemas defensivos haviam-se tornado ineficazes para deter uma tropa organizada e suportar o castigo de uma artilharia de grosso calibre.

As Condições de Defesa da Cidade

Poucos anos depois de Gabriel Soares ter descrito o estado lastimável das defesas de Salvador, chegou à cidade D. Francisco de Sousa, com a função de dirigir a grande colônia de além-mar. Diz Frei Vicente do Salvador, historiador e cronista baiano do século XVII, que D. Francisco “foi o mais benquisto governador que houve no Brasil”.

De 1591 a 1602, exerceu a sua autoridade com brandura, tornou-se muito simpático à população e aplicou-se em melhorar as defesas locais, segundo o cronista.

O novo governadorgeral vinha acompanhado de técnicos, entre eles o Engenheiro Militar Baccio de Filicaia, que possivelmente projetou as fortificações construídas no período.

Frei Vicente do Salvador informa que D. Francisco “fez três ou quatro fortalezas de pedra e cal”. O número quatro deve ser o exato, entendendo-se que as construções sejam a Fortaleza de Santo Antônio da Barra, a Fortaleza de Itapagipe (Monserrate), o Fortim de Água de Meninos (Lagartixa) e o Reduto de Santo Alberto (Igreja do Corpo Santo), além de novos muros de taipa para a cidade.

Para elucidar esse momento da história, mais importante que o Livro que dá razão do Estado do Brasil, de Diogo Moreno, é o relatório feito pelo mesmo autor em 1609, que descreve a localização das posições fortificadas. Como a finalidade do documento não era relacionar os pontos de defesa, mas a artilharia, não foram citadas as plataformas mais simples, armadas apenas no momento da necessidade, por haver pequena quantidade de peças disponíveis e/ou para não deixá-las ao relento.

Assim, o relatório de 1609 cita as posições fortificadas a seguir, a maioria delas voltadas para o lado do mar, com exceção das duas portas nas direções norte e sul:

  • Santo Antônio, na entrada da barra, na letra A, que se fez para a defender […].
  • Na entrada da Cidade, na porta de Santa Luzia, estão em uma instância sobre a mesma porta […].
  • […] Sobre a Igreja da Conceição estava outra instância com duas peças de bronze.
  • No meio da montanha, debaixo da Casa da Misericórdia, está também uma plataforma que defende a encosta no ponto junto à Cidade […].
  • […] ao pé dela (Estância da Santa Casa) para que jogue [atire] a lume da (água?) está Santo Alberto estância de pedra e cal que fez Dom Francisco de Souza […].
  • […] ao pé do Colégio de Jesus está outra plataforma bem alta que olha todo o porto e na (ilegível) até a água dos meninos […].
  • […] na última porta que vai para o Carmo está outro cubelo que defende aquela entrada […].
  • […] na praia da cidade, na ponta das trincheiras da banda do vazadouro velho está uma estância […].
  • […] mais adiante [também na praia], nas casas de Baltazar Ferraz estão duas peças […].
  • […] mais avante pela praia estão mais dois falcões de bronze […].
  • para a banda do norte desta Cidade, a uma légua, está outra ponta chamada Itapagipe que na planta se assinala com a letra G, donde aparece outro forte de pedra e cal da mesma traça de S. Antônio (da Barra).
  • […] noutra estância que me fica entre este Itapagipe e a Cidade que chamam Água dos Meninos […].

Segundo Teodoro Sampaio, além de construir as quatro fortificações já referidas, D. Francisco de Souza deu início “ao Forte de S. Bartholomeu na Ponta de Itapagipe, destinado a vedar a entrada do esteiro de Pirajá”.

Esse local ficava nas vizinhanças do atual Parque de São Bartolomeu, cuja toponímia teve origem no nome da fortaleza.

O mestre Teodoro era muito criterioso e deve ter tirado esse dado de algum documento, mas ele não informa se teve acesso a qualquer fonte primária que esclarecesse a questão.

Também parece estranha, em relação aos outros desenhos da época, a tipologia do Forte de São Bartolomeu (um polígono estrelado), o que não justifica uma negação absoluta da afirmação de Teodoro Sampaio, pois o desenho conhecido pode ter sido fruto de alterações posteriores.

Isso aconteceu com outros fortes, como Barbalho, Santo Antônio Além-do-Carmo e o atual Santo Alberto, que mudaram de fisionomia, ou Santo Antônio da Barra, que se metamorfoseou totalmente algumas vezes.

É o mesmo Teodoro Sampaio quem afirma ter sido Diogo Botelho, sucessor de D. Francisco de Sousa, o responsável pelo Forte de São
Marcelo.

É um ponto sobre o qual se deve discordar, mas muito seguido por diversos historiadores.

A gravura do cartógrafo holandês Hessel Gerritsz, reproduzida a seguir, é muito elucidativa pela inusitada fidelidade em relação aos elementos de defesa da Cidade do Salvador, logo após a invasão de 1624.

Como já foi destacado, na maioria dos casos, a licença poética dos artistas acrescentava alguma fantasia à realidade.

No desenho de Gerritsz, todavia, as posições de artilharia são indicadas pelo fumo dos canhões e, muitas vezes, pela inscrição da palavra “forte” ou “bateria” em holandês, com freqüência correspondendo à descrição de Diogo Moreno.

O desenho do Forte da Laje, conhecido na época como Forte Novo (Nieuwe Fort), mostra a real configuração da defesa. Nele figuram a
estância posicionada sobre a ermida da Conceição, a estância de São Diogo, abaixo da Misericórdia, a estância de pedra e cal de Santo Alberto e a plataforma bem alta ao pé do Colégio de Jesus, que deveria estar na olaria dos padres da Companhia (potte backery), de onde se via até a Água dos Meninos.

Quanto à estância da “banda do vazadouro velho”, poderia ser aquela indicada no Guindaste dos Padres (Papenhooft), como era chamado o elevador que levava mercadoria da Cidade Baixa, zona portuária, para o Colégio da Companhia de Jesus.

Das posições representadas, somente três não encontramos nas referências de Diogo Moreno: a bateria da Conceição, que é conhecida dos estudiosos; a bateria do Palácio, também muito conhecida e comentada por sua inutilidade; e uma plataforma no Carmo, que pode ser aquela do tempo de D. Fradique de Tolledo, comandante da expedição organizada por Portugal e Espanha para libertar Salvador dos holandeses, em 1625.

Realmente, é uma iconografia interessantíssima para o estudioso das fortificações de Salvador.

Veja História dos Fortes e Faróis de Salvador

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